Sonhei com a tua despedida, Cristiano
A cidade não terá ruas suficientes para todos os golos, mas o homenageado e os seus fãs viverão bem com essa mitologia
Este não será só mais um dia. Hoje, os portugueses amanhecerão tristes com a despedida, mas vão sorrir porque aconteceu. Por toda a parte, miúdos e graúdos, homens e mulheres, todos vão encher as ruas para ver passar o cortejo que mais tarde percorrerá a capital. Faz sentido. Lisboa foi a cidade em que o miúdo se fez sénior e mostrou pela primeira vez a sua qualidade de predestinado, mas esse foi só o sítio onde tudo começou. Faz sentido que este capítulo termine aqui, mas na verdade podia ser em qualquer outro local do país, eventualmente até do mundo, e as ruas e os estádios estariam cheios para lhe dizer adeus.
Este dia vai terminar com uma despedida que muitos, incluindo ele próprio, queriam que nunca chegasse, mas a ocasião acabou por tornar-se perfeita. 5 de fevereiro de 2024. É o dia em que Cristiano Ronaldo celebra 39 anos. Dificilmente alguém imaginou, naquela noite em Alvalade há mais de 20 anos, tudo o que ele viria a atingir e a longevidade que quase ninguém teve, mas as pernas de Ronaldo finalmente cederam, por muito que o seu coração, a competitividade inata e o amor próprio ainda o fizessem querer mais. Custou um pouco vê-lo perder as faculdades que o tornaram gigante entre meros mortais, mas aqueles últimos meses entre uma ida pouco feliz à seleção e a continuação de uma liga saudita que pouco fez para o merecer, foram o crepúsculo de que a sua carreira precisava.
Este dia irá terminar com um ponto final na carreira de Cristiano Ronaldo, mas só depois de muito se celebrar, no mesmo ritmo frenético com que Cristiano bateu recordes e somou feitos históricos: de golos marcados, pelos clubes e pela seleção; de troféus conquistados, pelos clubes e pela seleção; de minutos de trabalho, pelos clubes, pela seleção, e fundamentalmente por si; de seguidores angariados onde quer que fosse possível testemunhar o seu talento; e de motivos para orgulhar um país.
A festa não fará por menos. Se é para nos despedirmos de um dos maiores de sempre, que se lhe faça justiça. É por isso que, aos 38 minutos de cada hora que passar no dia 5 de fevereiro de 2024, no fuso horário de Manchester, Madrid, Turim Riade e, claro, Lisboa, milhões serão convidados a ir à janela, à varanda ou ao terraço para rodopiarem sobre si mesmos e gritarem a plenos pulmões: SIIIIIIU.
Nas televisões, a ocasião será tratada com a natureza protocolar e largura de tempo de antena só reservada a acontecimentos que definem uma época. Em diferentes canais, ao longo de todo o dia, veremos emissões em direto a partir dos locais que formam a biografia de Ronaldo, do Hospital Dr. Nélio Mendonça ao Estádio Prince Faisal bin Fahd. Ouviremos com alguma comoção amigos, familiares, colegas, treinadores, adeptos, comentadores, e quem mais tiver testemunhado a sua carreira, todos eles comovidos, contarem histórias do miúdo que veio sozinho da Madeira e conquistou o mundo, de como ele foi sempre o primeiro a chegar ao treinos e o último a sair, histórias de como nunca perdeu o apetite de bater recordes mas sempre jogou em equipa, de como tornou tantos jogadores melhores do que alguma vez foram simplesmente por poderem fazer parte do mundo em que Ronaldo viveu a cada jogo disputado, de como competições inteiras foram decididas por ele, histórias de como foi passar duas décadas preso a uma rivalidade que nenhum outro par de futebolistas teve ao longo da história da modalidade.
Chegará então a hora de o mundo convergir para o Estádio de Alvalade. O cortejo que leva Ronaldo até à sua casa vai atrasar-se, mas não faz mal. Adia-se a despedida mais um pouco. Parece até poético. Adeptos de todos os clubes enchem as ruas. Um arco-íris não planeado de camisolas de futebol conta a história de um jogador que despertou sempre mais paixões do que ódios. Pessoas que amam o futebol vão chorar com o sentimento partilhado naquele momento. Pessoas que odeiam o futebol vão questionar a sua importância na sociedade, perguntando porque é que não há ajuntamentos destes para ir ao teatro. Ninguém lhes vai explicar que a comparação é estúpida, porque temos todos mais que fazer, e, convenhamos, porque não existe nenhum Cristiano Ronaldo no teatro. O cortejo prosseguirá indiferente ao rótulo de baixa cultura.
Colunas de som espalhadas pela cidade emitirão relatos de golos seus e ecrãs gigantes acompanharão com as imagens repetidas de todos os ângulos imagináveis. Todos memorizámos os golos, mas ninguém se cansará de os rever. Em cada esquina da cidade, avizinha-se mais um de Cristiano. Cada rua ganhará o nome de um dos seus golos: Avenida do Pontapé de Bicicleta à Juventus, Travessa Daquele Golo Em Camp Nou, Miradouro da Cabeçada à Sampdoria, Beco do Golo à Espanha Anulado Por Causa do Nani, e assim por diante. A cidade não terá ruas suficientes para todos os golos, mas o homenageado e os seus fãs viverão bem com essa mitologia.
Já em Alvalade, perante um estádio feito santuário coberto de camisolas verdes e brancas mescladas com pretas e douradas, veremos cada um dos treinadores de Cristiano entrar no relvado para homenagear o melhor jogador que alguma vez tiveram oportunidade de treinar. Todos trarão palavras escritas em casa para explicar exatamente como foi, mas nenhum lhe fará exata justiça. Depois os colegas, a seguir a família. O relvado será pequeno para tanta gente, mais ainda porque sobre o mesmo tapete de Alvalade serão dispostos todos os troféus individuais e coletivos conquistados por Ronaldo, e veremos apresentados, por ordem cronológica, todos os recordes batidos.
Cristiano tentará explicar o que foi afinal tudo isto. A comoção falará mais alto, mas ele tentará prosseguir. Falará da sua ambição, da ética de trabalho, do talento que tentou sempre aperfeiçoar, e no final ninguém, nem mesmo ele, saberá explicar exatamente o que isto foi. Só sabemos que foi único, um enorme privilégio. Os portugueses anoitecerão tristes, mas sorrirão porque aconteceu. E talvez assim, finalmente, possamos todos seguir em frente.