Planeamento nebuloso
Nevoeiro na Madeira na tarde de sábado levou ao adiamento (para 17 de dezembro) do Nacional-Benfica (Foto: GRAFISLAB)

Opinião de Vasco Mendonça Planeamento nebuloso

Selvagem e Sentimental é o espaço de opinião semanal de Vasco Mendonça, comsultor de marketing

Nada como o futebol para nos devolver à terra por via do nevoeiro. Não consigo imaginar algo mais anticlimático do que uma ida à Choupana de uma vitória épica na competição mais exigente do mundo. Pode parecer que é um comentário depreciativo acerca do Nacional da Madeira, mas nada me move contra madeirenses. A culpa do nevoeiro não é deles. Já a culpa de quem marca jogos para a hora em que o nevoeiro mais vezes se faz sentir, essa, sabemos que morrerá solteira.

Mais do que a impossibilidade de ver o Benfica jogar, que também me irrita, incomoda-me que uma equipa a viver um excelente momento, sujeita a um calendário com 15 jogos daqui até final do ano, se veja privada de capitalizar esse momento de forma porque uma série de pessoas incumbidas de planear e antecipar cenários não fizeram o seu trabalho.

Ninguém escolhe os adversários no calendário, mas podemos escolher a hora a que jogamos. Por isso, escusam de lhe chamar azar. Azar seria se isto não tivesse acontecido dezasseis vezes antes desta ida do Benfica à Madeira. Azar era se não soubéssemos quais os períodos do dia (ao amanhecer e ao anoitecer) em que o nevoeiro se faz sentir com maior frequência. Azar era se não tivéssemos desperdiçado os primeiros 10 minutos do jogo quando toda a gente percebeu que este não tinha condições para se realizar e que um regulamento burocrático iria ditar o adiamento. Mas, se após 14 jogos de um calendário intenso como aquele que o Benfica tem pela frente nos próximos 2 meses e meio, a equipa tiver um dia menos bom e perder pontos, quando tinha ontem um dia ótimo para vencer, não será azar, mas falta de competência dos jogadores e do treinador.

Se todos conseguimos concluir que esta situação era evitável, também somos forçados a concluir que aquilo que se passou ontem é uma potencial interferência na verdade desportiva. Pode ser que tenhamos sorte e alguém mude os regulamentos ou os jogos passem a ser marcados para uma hora que faça sentido. Aguardemos, de preferência sentados.

Florentino e o azar de não ser um polvo

Não que fosse preciso contabilizar para saber que Florentino é um médio defensivo de rara qualidade, mas o gestor de redes sociais da Champions League faz bem em lembrar. Foram 23 recuperações de bola em 180 minutos, o que faz dele o jogador mais eficaz da competição. Como se isso não bastasse, é também um dos 3 melhores em desarmes. Até podia dar-se o caso de o seu desempenho ficar por aí, mas não. Qualquer treinador ou adepto atento sabe muito bem aquilo que Florentino garante às diferentes equipas que o Benfica tem apresentado em campo: quase sempre mais posse de bola, qualidade no passe, e uma sobriedade necessária naquela zona do campo para quem pretende manter a posse. Não é o melhor jogador na história da modalidade a ocupar aquela posição, mas é um dos mais trabalhadores que conheço e é, muito provavelmente, o melhor nascido em Portugal — não apenas agora, mas há já algum tempo. 

Admito que alguns leitores pensem, na sua ingenuidade, que estes números são mais do que suficientes para justificar a primeira convocatória de Florentino à seleção nacional. Eu também, até descobrir que há espaço para um Samu Costa, mas não há lugar para Florentino. Suspeito que a segunda melhor opção para o jogador do Benfica chegar à seleção é se conseguir efetivamente transformar-se num polvo e aprender a jogar com todos os tentáculos. Esta é a segunda melhor opção. A alternativa, geralmente muito eficaz, é mudar de representantes. Talvez assim Roberto Martínez, sempre tão cirúrgico a elogiar jogadores com os agentes certos, se lembre de um dos futebolistas portugueses em melhor forma na atualidade. Às vezes apetece perguntar se houve algum equívoco na federação e o selecionador nacional não sabe que Florentino é português. Depois lembro-me que a seleção portuguesa continua a ser ocupada por outro polvo, cujos tentáculos chegam de uma ponta à outra do relvado. Meu caro Tino: lamento, mas talvez seja melhor jogares por Angola. Tenho a certeza que farão de ti o herói que aqui não te dão oportunidade de ser.

É por estas e por outras que o melhor das pausas no calendário dos clubes é o tempo que sobra para acompanhar outras modalidades desportivas ou pôr outras atividades em dia.

O calendário sem fim à vista

Tem-se por hábito considerar todos os futebolistas muito bem pagos e afortunados. Admito que seja o caso de muitos, mas isso não deve fazer-nos ignorar uma realidade cada vez mais evidente, cujas consequências são iminentes. Começa a existir um excesso de jogos no calendário. É causado pela multiplicação de competições, por sua vez justificadas por interesses financeiros. Eu também gosto de ver mais jogos da Champions League, mas, fazendo contas, quem disputar a Liga portuguesa, ambicionar uma vitória na Taça de Portugal, quiser lutar pela Taça da Liga, tiver condições para uma boa participação em competições europeias, e ainda quiser garantir uma participação competente no primeiro Mundial de Clubes, em 2025, terá de contar com cerca de 60 jogos esta época.

É comum usar-se o argumento de que os futebolistas são pagos para suportar a exigência física e psicológica do atual calendário competitivo, uma espécie de são pagos para isso. Tenho uma novidade: não, os jogadores não são pagos para toda e qualquer exigência profissional, não a partir do momento em que essa exigência coloca em causa a capacidade física e mental do profissional. Se dúvidas restarem, basta perguntarem a jogadores, aos treinadores que têm repetido alerta sobre este tema, ou aos preparadores físicos, pelos efeitos já sentidos de um calendário com jogos de 3 em 3 dias, que para os melhores atletas inclui jogos de seleção e, para outros tantos, edição do Mundial de Clubes que será jogada num clima tórrido nos EUA.

Já agora, lanço um desafio ao leitor: o que sentiria se trabalhasse numa fábrica e de repente lhe pedissem para passar a trabalhar todos os fins de semana, pelo mesmo salário, com o argumento de que isso era necessário para fazer face a novas encomendas? Sim, é verdade que este problema não afeta todos os jogadores de igual forma. Acontece que os jogadores que se preparam para realizar mais jogos esta época são também, na sua grande maioria, os melhores atletas da modalidade e os maiores responsáveis pela qualidade percebida das competições em que participam. Até aqui, este problema tem parecido uma coisa estrangeira, mas o calendário competitivo português também merece discussão. Não é por termos mais jogos no calendário competitivo que temos melhores jogos, como aliás é facilmente constatável. Basta ver os jogos para chegar a esta conclusão. Se os jogadores e os treinadores se queixam, e o futebol praticado raramente compensa o tempo despendido, quem ganha com este estado das coisas?