Opinião de Vasco Mendonça A identidade do Benfica, odiado pelo adversário: golos como punhais
Ninguém vê um clássico e pensa que são só três pontos. Nunca é apenas isso. São jogos que perduram na memória coletiva, nas conversas, nos 'memes', nas análises estatísticas
Nas contas do clássico infinito, assim como nas do campeonato, o Benfica continua a ter muito trabalho pela frente, mas esta época já apresenta um saldo positivo, tanto no goal average como no pride average, e logo frente ao adversário que mais nos incomodou ao longo da nossa história. Não por acaso, é também aquele que mais nos odeia — um combustível eficaz, por muito que me custe, daí que dê especial prazer assistir à sucessão de acontecimentos.
O somatório dos dois jogos realizados contra o FC Porto na Liga esta época resultou numa goleada de 8-2 que é, objetivamente, um acontecimento histórico que sempre desejámos mas que sempre pareceu altamente improvável. Houve mérito do adversário na criação deste fenómeno psíquico que nos atormenta há muitos anos, mas houve também muito demérito nosso. Lamento o tempo que foi preciso vivermos até que um dia como este chegasse, mas mais vale tarde que nunca. E chega na melhor altura possível, na fase da época em que o Benfica precisava de redobrar a confiança.
O pride average foi a grande vitória destes dois jogos: a diferença entre os motivos para nos orgulharmos e as razões para embaraço. Ninguém vê um clássico e pensa que são só três pontos. Nunca é apenas isso. São jogos que perduram na memória coletiva, nas conversas entre correlegionários, nos memes que inundarão as redes sociais para comparar as piores noites de cada lado da barricada, nas análises estatísticas que a partir daqui usarão estes resultados como fasquia à qual o Benfica deve aspirar. Assim seja. Poucas imagens terão sido tão explicativas disto quanto a expressão facial do guarda-redes Diogo Costa na flash interview de domingo à noite.
Enquanto referência contemporânea do seu clube, exemplo de profissionalismo e competência, mas também enquanto representante do portismo dentro do relvado, Diogo Costa era a pessoa ideal para falar aos jornalistas e, por via desse momento, aos adeptos. O seu embaraço foi particularmente notório, não apenas no pedido de desculpas, mas no modo como as suas hesitações verbais revelaram aquilo que realmente pensava acerca do resultado dessa noite e do momento que o FC Porto atravessa. Estas duas goleadas fizeram uma enorme mossa e não foi na classificação da Liga.
Os quatro golos sofridos em casa são golpes desferidos na identidade de um clube que sempre se afirmou por oposição ao Benfica — um clube que realizava ali, segundo o seu presidente, «o jogo da época», naquele que foi o momento simultaneamente mais honesto e mal planeado da presidência de André Villas-Boas. Quis a ironia que o Benfica tornasse este o jogo de uma época, sim, por ter cristalizado a ideia de que este FC Porto não é quem afirma ser. Não há nada mais eficaz num jogo de futebol do que fazer o adversário questionar quem é, de onde veio, quem representa, do que é capaz. Parece lirismo, mas foi isso que se viu, uma tragédia em movimento. Não sei bem em que consistiu o castigo da equipa que voltou a pernoitar num hotel de 5 estrelas, mas dificilmente terá sido maior que o castigo de enfrentar um Benfica absolutamente seguro de si e senhor do jogo.
Desferido o primeiro golpe ao fim de poucos segundos, a equipa soube manter uma compostura rara nestes clássicos, perante um adversário que já duvidava do seu valor antes do apito inicial e que passou o resto do jogo a combater os fantasmas do passado. Não tenho a ingenuidade de pensar que todos os problemas observados neste jogo foram todos causados pelo Benfica ao longo de 90 minutos. Os dramas do FC Porto não são assim tão simples e os seus adeptos sabem isso melhor do que ninguém, mas é importante notar que soubemos dominar o jogo sem tentar vencê-lo com esparrelas. Arrisco dizer que até isso terá desiludido os adeptos da casa. Não deu sequer para revelar o proverbial mau perder numa agressão intempestiva ou na pressão ao árbitro. Foi, como se costuma dizer, limpinho. Houve quem abandonasse a bancada a 25 minutos do fim, talvez por ter percebido que a sua equipa não tinha como responder, fosse com futebol ou com as artimanhas que os celebrizaram. Atacámos a vulnerabilidade do adversário com uma eficácia cirúrgica, baseando a superioridade numa série de evidências futebolísticas que só não acabaram em maior goleada porque os deuses foram misericordiosos.
O jogo teve muitos momentos para mais tarde recordar, mas nenhum supera o último golo. Quando o resultado já parecia feito e se traduzia numa derrota comprometedora e embaraçosa, Otamendi, o capitão de uma equipa consciente da oportunidade, voltou a bater um adversário que abandonara a bancada 25 minutos antes, sem saber para onde, à deriva nas ruas da cidade do Porto. Já não estava lá ninguém, só os fantasmas do passado e uma equipa feliz a jogar de encarnado.
São só três pontos, mas nunca é só isso. O futebol também se faz desta crueldade bem aplicada, e foi justamente isso que fez desta uma noite para recordar — talvez por mais tempo do que outras noites felizes no Estádio do Dragão. Assim se afirma a identidade de um clube historicamente odiado pelo seu adversário. Golos como punhais.
Agora, de volta à Terra. Soube bem, mas de pouco servirá se não permitir ao Benfica vencer uma Liga estranha em que já passámos por todos os estados de espírito. A partir daqui não sobra outra opção. Ganhar. Celebrar. Repetir. Vamos a isto, rapazes!
Já fiz um report pelo comentário inqualificável daquela coisa cuja se intitula por Tomanel