De Bruyne e de todos nós
Não há quem veja um jogo de futebol como o extraordinário médio internacional belga
Não há como não adorar Kevin de Bruyne. Há ali qualquer coisa de Kaká, talvez pitadas do Laudrup mais velho e até trejeitos do non-flying dutchman Bergkamp, que ainda mais força conferem à já de si impositiva expressão de que o cérebro é, sem dúvida, o músculo mais forte do corpo.
Bem exercitado, como sempre parece estar, carrega com facilidade um elevado quociente de inteligência. É por isso que vê com nitidez ultra HD o que o mais ninguém vislumbra e quando, por acaso, o quase impercetível movimento ao longe nos arbustos não passa despercebido a uma ou a outra alminha, não haverá neste mundo gente mais veloz a decidir. Ou o faça com tão apurada destreza de cirurgião.
Usar um bisturi com os pés não é para todos, não se iludam. Muito menos fazê-lo com tamanha naturalidade.
Kevin não é comparável a qualquer outro Pelé que não tenha nascido ruivo e mesmo que só a nível mental ocorra essa ginga capaz de descer slalons gigantes em drible reconhecida aos Zicos e Cruijffs da nossa idolatria, esses dignos sucessores do mais famoso filho de Três Corações, aquele cabelo cor de cenoura não escapa à associação que estes de bom grado aceitaram.
São 11 assistências em 12 jogos e um City que ganha clarividência, parece recuperar o rumo e se empolga novamente. Com ele, o Haaland exterminador volta a ser implacável e o I’ll be back resmungado é agora repetido após cada golo, como se ele próprio não fizesse ideia de como parar. A decisão sobre as suas ações deixou de ser sua, é o belga quem manda. E ele o robô indestrutível que obedece a punhos de marioneta.
Um passe de De Bruyne é uma inevitabilidade pronta a acontecer, um furacão num dia sem vento, que se levanta de debaixo dos pés de um Tsubasa de carne e osso, pronto a levar tudo à frente, o goleador incluído, até à linha de golo. É o punch line de uma boa história. A moral de uma lenda. Uma obra de arte digna do Louvre.
O corpo tem-no desiludido, cedendo em momentos que o poderiam ter elevado ainda mais, ao ponto de quase conseguir bater às portas do Olimpo. E em nenhuma vez foi o cérebro, mas sim os outros músculos a ceder, aliando-se aos deuses do azar ao jogo, ciumentos do papel que o primeiro ganhou na sua vida.
Exercitados como sempre, os seus neurónios chegaram rapidamente a um consenso sobre o não dito aos milhões de petrodólares que ameaçavam chover desde a Arábia Saudita, do Al Hilal de Jorge Jesus. Sabe que a Europa ainda não se cansou dele e que ele próprio ainda tem a descobrir inúmeros caminhos ainda não desbravados até o golo. Talvez venha mesmo a fazê-lo um dia no meio do deserto, tornando-se no maior descobridor de oásis da história, mas esperemos que não seja tão cedo, mesmo aos 32 anos e a um ano do final de contrato com os citizens.
Daqui a décadas, talvez o encontremos ao virar da esquina, já velho sábio, de barba branca e vestes de eremita, a dar conselhos às gentes sobre as grandes decisões da vida.