A realidade continua a estragar uma boa história
Marcos Leonardo (Foto: Miguel Nunes/ASF)

A realidade continua a estragar uma boa história

OPINIÃO16.01.202410:00

A exigência dos Benfiquistas também nos tolda por vezes a capacidade de ver o que está bem no clube. Faz parte da condição do adepto

Ontem fiz uma coisa que não fazia há algum tempo. Matava tempo enquanto esperava pelos primeiros encontros do dia no Open da Austrália e decidi passar pelos canais de cabo para ver que temas arreliavam o mundo. Ultrapassado o contingente habitual de especialistas em relações internacionais para quem a guerra na Ucrânia parece ter sido a melhor coisa que lhes aconteceu, eis que cheguei aos debates verdadeiramente importantes, neste caso os dedicados ao rescaldo da jornada futebolística. Devo confessar uma coisa. Às vezes sinto saudades de participar num programa de televisão para dirigir as proverbiais bojardas a adeptos de outros clubes, mas tenho verificado ao longo dos anos que existe um remédio eficaz para isso. Resumidamente, consiste em passar alguns minutos a assistir a um dos referidos programas.

Continuo a gostar das picardias e acho que hei-de voltar a participar em alguma espécie de cavaqueira com adeptos de outros clubes, mas sinto que o formato televisivo tradicional se esgotou ao fim dos muitos anos que leva em antena. Ainda assim, contra as minhas observações pessimistas, este fim de semana verifiquei que ainda existe espaço para surpreender. Passados alguns minutos, o zapping não deixava margem para dúvidas: o Benfica fora goleado sem apelo nem agravo pelo Rio Ave, na sua própria casa, após uma exibição paupérrima justamente coroada com a perda dos 3 pontos. Pelo menos assim pareceu, tal foi o empenho com que algumas análises discorreram sobre os apuros do Benfica em mais uma vitória, por números mais uma vez esclarecedores. O mesmo zapping mostrou-me que o Sporting segue imparável na frente do campeonato e é um sério candidato à Champions League, assim que seja deferido o pedido para ser integrado nos oitavos de final da competição.

Eu percebo. A exigência dos Benfiquistas também nos tolda por vezes a capacidade de ver o que está bem no clube. Faz parte da condição do adepto, mas é mais fácil de aceitar em quem torce diariamente pelo clube. É que a vontade é só uma: ganhar, ganhar mais, ganhar melhor, até alguém eventualmente se cansar, o que nunca acontecerá. É um pouco diferente, no entanto, quando esta aparente exigência vem de adeptos ou jornalistas notoriamente conhecidos por serem vozes críticas do Benfica. Os Benfiquistas são conhecidos por apoiar seja onde for. Os restantes notabilizam-se por criticar seja o que for. Não é surpresa que boa parte destas pessoas construa o seu sucesso na atual economia de conteúdos através da capacidade de questionar qualquer mérito, constatação de estabilidade ou até o sucesso desportivo do maior de Portugal.

Não levo muito a peito. Isto é o tipo de coisa que acontece num país pequeno em que um dos clubes é maior do que o segundo e o terceiro maior juntos. É fácil verificar que a mesma exigência não pode ser aplicada aos outros clubes, porque na verdade ninguém quer saber disso. Os dramas de Sporting e FC Porto, a não ser que sejam extremos, interessam pouco ou nada à generalidade dos adeptos em Portugal. É assim que, perante a ausência de dramas reais no Benfica, se inventa alguma coisa. A equipa que treme, as certezas que não chegam, os jogadores que não se adaptam, as posições por preencher, a dependência deste ou daquele jogador, o suposto favorecimento de uma arbitragem, e o que mais houver à mão.

Se uma pessoa estiver distraída, poderá até passar ao lado da realidade. Uma exibição menos conseguida, concedo, traduziu-se na sétima vitória consecutiva. O Rio Ave teve mérito, de facto, e teve também falta de competência, já que a expulsão do seu jogador é da responsabilidade do mesmo. Muito se fala da condição desfavorável das equipas pequenas, mas um jogador de clube grande que fizesse isto seria crucificado, e com alguma justiça. Até o atleta do Rio Ave concordará que foi pouco inteligente. No entanto, os dinamizadores da economia de conteúdos não perdoam e já aproveitaram para fazer disto uma espécie de generalização sobre uma equipa levada ao colo, não vá essa mesma equipa ganhar alguma ou todas as competições que se encontra a disputar esta época.

Quanto ao Benfica, o real e não o imaginado, apesar da crise profundíssima que atravessa, segue a um ponto da liderança da liga com apenas 11 golos sofridos e, apesar de algumas dificuldades ofensivas, está apenas a 5 golos das duas equipas com mais golos marcados e inventa golos em todos os jogos. Esta mesma equipa descobriu dois novos pontas de lança, laterais adaptados melhores do que muitos inadaptados, e até alguns jogadores em invulgar subida de forma. Mas não é tudo. Nestes últimos sete jogos, o Benfica assegurou a continuidade nas provas europeias, conquistou pontos a dois dos principais adversários na liga, assegurou a presença na final four da Taça da Liga, eliminou uma das melhores equipas do país na Taça de Portugal, a mesma que já tinha vencido fora há um mês, e fez tudo isto com uma taxa de ocupação do estádio a rondar os 90%.

Imagine-se o que seria de facto houvesse alguma crise ou, por outra, a dificuldade que será colocada a algumas pessoas se o Benfica continuar a melhorar o seu rendimento como tem feito ao longo das últimas semanas. Há quem vaticine o fim da estrelinha, a tragédia iminente desta equipa, como se esta época não fosse acima de tudo uma enorme falta de estrelinha em alguns jogos importantes. O movimento que insiste em apostar no insucesso do Benfica seria mais preocupante se esta equipa não tivesse, nos momentos em que isso importava, mostrado uma absoluta indiferença face aos vaticínios. É assim que deve ser. Seguimos numa competição contra nós mesmos e mais ninguém. Que a realidade continue a estragar a história dos outros. Seja onde for, por muito que alguns critiquem seja o que for.

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