«É mais fácil iniciar conversa sobre Ronaldo do que sobre Vasco da Gama»
Adepto português usa uma máscara com a cara de Cristiano Ronaldo no jogo entre Portugal e Turquia, em Dortmund (Foto: IMAGO)

ENTREVISTA «É mais fácil iniciar conversa sobre Ronaldo do que sobre Vasco da Gama»

SELEÇÃO25.06.202409:30

Entrevista à investigadora alemã que coordenou estudo sobre a importância do futebol na emigração portuguesa

Alemã, casada com um português, adepta do Benfica e não dispensa um bom bacalhau. Nina Clara Tiesler é professora na Universidade de Leibniz, em Hanover, e investigadora afiliada do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, tendo coordenado um estudo sociológico que aponta o futebol como o elemento mais agregador da emigração portuguesa. Porque nesta área ser português «é estar no topo». Isso faz toda a diferença.

- O que a levou a conduzir e coordenar um estudo sobre o papel do futebol na emigração portuguesa?

- Quando me mudei para Portugal fiquei logo integrada no Instituto das Ciências Sociais de Lisboa. Como eu venho da Alemanha, que é um país de imigração, foi especialmente interessante conviver num país da emigração. O tema da emigração é muito presente no quotidiano português e o futebol tem uma omnipresença nos media portugueses, no dia-a-dia, na vidas das pessoas. É um país que tem três jornais desportivos, dois deles fazem parte do top 5 dos jornais mais lidos. Também foi um pouco estranho ver que os telejornais abrem com informações sobre futebol, o que na Alemanha só acontece quando há megaeventos como o Euro 2024.

- Como se desenrolou a investigação?

- Éramos uma equipa de investigadores internacionais e abordámos comunidades portuguesas na Alemanha, Suíça, Inglaterra e França, mas também no Brasil, Moçambique, Estados Unidos e Canadá. Tínhamos uma rede de investigadores, entre eles também lusodescendentes que tinham bastante conhecimento do campo antes de conceptualizar o estudo. Quando o fizemos foi em 2007, já após o Euro 2004, e queríamos observar as comunidades portuguesas nestes países durante o Euro 2008. Nesta altura, instituições como a secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas e o Instituto Camões expressavam três preocupações: a perda de interesse entre jovens portugueses e lusodescendentes nas associações dos emigrantes, decréscimo das competências da língua portuguesa entre estes mesmos jovens e o facto de 95% dos emigrantes não estarem a usar o seu direito de participar nas eleições.

Nina Clara Tiesler continua a ter grande proximidade com a cultura portuguesa. Os filhos são bilingues (Foto: D. R.)

- Essas preocupações faziam sentido?

- Achávamos que sim. Mas em países como o Brasil, Canadá ou a Alemanha, sempre que havia jogos dos clubes portugueses ou da Seleção Nacional encontrávamos uma motivação e uma alegria bastante fortes entre emigrantes e jovens portugueses. Assim, o nosso interesse foi ver como estas pessoas que vivem fora de Portugal estão a reconstruir ou a manter um laço com o seu país de origem. Foi um pouco esquisito, porque eu estava a pesquisar jornais das associações de emigrantes e encontrei um discurso que achei pouco realístico.

- Como assim?

- De que os emigrantes eram representativos da cultura portuguesa, da história dos Descobrimentos e que foram os portugueses a trazer o chá para a Europa, eram histórias antigas. E quando me encontrei com emigrantes portugueses em Hannover, Estugarda, Hamburgo e os meus colegas em França, o que percebemos é que eles nada falavam dos Descobrimentos. Falavam, em primeiro lugar, do futebol português. As pessoas reais não falam com os seus colegas do trabalho sobre o Vasco da Gama, mas falavam na altura do estudo de José Mourinho e Figo e agora de Cristiano Ronaldo. 

- Portanto, havia dois tipos de discurso: o oficial e o real.

- Os emigrantes queriam representar uma cultura portuguesa, mas não foi a cultura oficial do governo português, foi a cultura popular. E porquê o futebol? Porque no futebol Portugal não é um país semi periférico da União Europeia, pelo contrário, é um global player de topo e especialmente após o Euro 2004 com a geração de ouro e depois ainda com José Mourinho, Cristiano Ronaldo, mas antigamente com Figo, etc. Esta identificação com a Seleção Nacional, mas também com os clubes, significa que ser português é estar no topo. Além disso o futebol fornece uma língua internacional, isso facilita uma ligação entre vários países e com os vários colegas no trabalho, é muito melhor do que outros discursos sobre a cultura oficial portuguesa.

- É um fenómeno específico da emigração portuguesa?

- É um fenómeno global, mas os portugueses têm uma situação um pouco mais privilegiada. Não são todos os países [de emigração] cujo futebol esteja no topo do mundo. E não faz assim tanta diferença se é a Seleção Nacional ou um dos grandes clubes. Entre os emigrantes encontrávamos maior identificação clubística com o Benfica e o FC Porto, só depois vem o Sporting.

- Também se assiste a menor rivalidade na emigração. Entre italianos emigrados não é comum um adepto do Inter festejar uma vitória da Juventus numa competição europeia…

- Exato. Aqueles que se mudaram para Hamburgo, por exemplo, onde encontraram portugueses do sul, do norte e de outras regiões, desenvolveram esta auto perceção de ser português e não alentejano, por exemplo. Mas há outro fenómeno interessante: em Hannover há poucos sítios gastronómicos portugueses e então os portugueses estão a conviver muito com espanhóis. Dentro de Portugal seria um pouco absurdo pensar que portugueses e espanhóis estão a torcer pelo mesmo clube quando está a jogar, por exemplo, o Benfica. Mas na emigração tudo é um aumento de diversidade em vários aspetos. Por exemplo, o aumento da lealdade com outros clubes: 80% dos homens que entrevistávamos também têm um clube alemão na Alemanha. Ou quando a Seleção portuguesa está fora da competição também têm outra nação, por exemplo, os que vivem na Alemanha, muitas vezes é a Alemanha ou a Espanha.

- Em Portugal será menos normal apoiar-se a Espanha…

- É uma situação mais específica na Alemanha. Ao contrário do que acontece em França, os portugueses são uma pequena minoria nacional. Em França, nas décadas de 50, 60 e 70 eram mais os trabalhadores [portugueses] sem graus académicos. E por isso tinham um estatuto social, digamos, subalterno, em comparação à maioria da sociedade. Na Alemanha foi diferente porque neste país eram outros grupos que tinham este papel de imigrantes subalternos e os portugueses menos visíveis eram muito menos defensivos, digamos, através do seu estatuto social.

- Mas com a nova emigração, tudo isto já é diferente.

- Porque os fluxos migratórios mudaram um pouco. Hoje em dia são muito mais jovens com cursos académicos, com outras qualificações, que também fizeram experiências na Europa, como o programa Erasmus. Então, esta geração de, digamos, pessoas móveis que estão a cruzar fronteiras europeias identifica-se mais como europeus. É um fenómeno transversal do ponto de vista social: se formos a Stockwell, o bairro português de Londres, vemos pessoas da alta finança a ver jogos do Benfica na Liga dos Campeões bebendo cerveja portuguesa ou comendo pastéis de nata juntamente com emigrantes de extratos sociais mais baixos. 

- O futebol surge como o fator de identificação portanto…

- Exato. Na Alemanha, por exemplo, as mulheres têm uma identificação maior com o futebol quando se trata da seleção, ao passo que as mulheres portuguesas que entrevistámos tinham um clube. O futebol é transversal a todas as classes sociais porque é um fenómeno super moderno. As narrativas do Portugal dos pais e dos avós que os jovens recebem já nada têm a ver com a experiência deles enquanto europeus. São como fotografias em preto e branco que os avós estão a contar as histórias do Alentejo. Quem é que pretende identificar-se com pastéis de natas de manhã até à noite, ou com o Vasco da Gama? Não sei… mas é muito mais fácil entrar numa conversa com outros jovens falando do futebol, uma língua internacional, moderna.

- Estes estudos foram compilados na obra Diasbola, publicado em 2012. Um nome interessante…

- É uma mistura das palavras diáspora e bola. Realizou-se com uma equipa internacional de investigadores, financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) e promovido pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, de 2007 até 2011, coordenado por mim. Tínhamos Nélia Bergano na Suíça, Stephen Wagg em Inglaterra, Victor Pereira em França, Miguel Moniz nos EUA, João Sardinha no Canadá e Nuno Domingos em Moçambique.

- Que se foca, portanto, no futebol como o elemento que mais une a comunidade emigrante portuguesa. É isso?

- Sim. Estávamos curiosos para perceber quais os elementos culturais que os portugueses conseguem reconstruir no seu quotidiano para manter esta ligação forte ao seu país de origem. Estávamos a analisar os elementos da cultura popular do quotidiano dos portugueses, desde a culinária à participação nas eleições, passando pelo consumo de media, e detetámos que estava tudo a perder para a identificação futebolística e para a cozinha portuguesa. Infelizmente não conseguimos comparar a importância do futebol no quotidiano diaspórico de emigrantes espanhóis ou italianos, mas percebemos por exemplo que nos Estados Unidos o Canadá, por serem países onde o futebol não é o principal desporto, o futebol une emigrantes de Portugal, Espanha, Itália e Irlanda. Além disso vimos as segundas e terceiras gerações, que preferem desportos daquele país a tentar ter uma ligação com o futebol para agradar ao pai, mesmo que, coitados, não possam conectar-se com os colegas de escola se for através do futebol e não do basquetebol ou hóquei no gelo.

- Acredita que esta onda de entusiasmo vai ser semelhante ao que aconteceu em 2006, no Mundial da Alemanha?

- Acho que sim. Mas desse ano recordo que pela primeira vez três equipas da língua portuguesa estavam em competição: Portugal, Angola e Brasil. Recordo-me de ver jogos de Angola com portugueses a apoiar nas bancadas e vice-versa.

- Se Portugal não for à final, por que equipas poderão os portugueses torcer?

- Não tenho certeza, mas diria Alemanha ou Espanha. Mas sabe que o futebol ajudou também a criar uma imagem mais moderna do país, por exemplo, na Alemanha.

- A partir de que período?

- A partir do Euro 2004. Aquelas imagens que vimos ao longo de um mês transmitiram um Portugal bonito, moderno, rico de alegria, de autoestima. Esta imagem também significou muito para os emigrantes portugueses.

- Concluindo: do ponto de vista social, é muito mais fácil um a um português identificar-se com um jogador como Cristiano Ronaldo do que um alemão identificar-se com um gigante da indústria automóvel ou da cultura? Estamos a falar de um país que é líder mundial em muitas áreas.

- É. Porque estamos no domínio das emoções. E repito: no futebol, Portugal não é um país semi periférico da União Europeia. Pelo contrário, tem grande peso. Por exemplo, um alemão tem outras vergonhas quando está no estrangeiro, ao passo que os portugueses se mostram orgulhosos.

- Do que um alemão se orgulha?

- Não sei… os alemães são um pouco esquisitos com os seus orgulhos nacionais, mas como alemã não temos historicamente muitas razões para ter um grande orgulho. Lembro-me, no entanto, quando Angela Merkel, nos tempos de grandes fluxos de refugiados, disse a frase ‘Vamos conseguir’, que era uma forma de dizer que eles eram bem-vindos; ao mesmo tempo assistimos ao escândalo dos motores a diesel das marcas de automóveis. Nessa altura gostei de ser alemã: de repente os estrangeiros viam-nos como pessoas simpáticas que construíam carros maus [risos].

- Os alemães não têm o futebol como fator de identificação tão expressivo e concentrado como Portugal?

- Também têm o andebol, o futebol feminino… e há uma certa sensação de estarem fartos destas políticas à volta da FIFA e do futebol masculino.

- Portanto, dificilmente teremos o chanceler alemão dizer ‘We are fado, we are bacalhau, we are Cristiano Ronaldo’?

- Exatamente!