Os limites do mau perder
Quanto mais o FC Porto perde, como tem acontecido nos últimos tempos, mais temos de aturar o eufemístico «mau perder» de Sérgio Conceição
"Somos livres de entender que uma pessoa tem má educação, mas a palavra conta e a palavra tem peso. É diferente dizer que é grosseiro ou que é javardo. Podia ter dito tudo o que disse sem ter usado a expressão em causa. Aqui mostra-se a linha que não se deve ultrapassar"
A afirmação acima pertence a uma juíza do Tribunal Criminal da Comarca do Porto e foi proferida no contexto da recente condenação de Francisco Seixas da Costa por difamação agravada a Sérgio Conceição. Respeito os fundamentos e até reconheço validade aos mesmos. Já fui muitas vezes insultado nas redes sociais e raramente considero os insultos justos ou adequados. Muitos resultam do calor do momento ou da bebedeira digital, mas não são mais aceitáveis por causa disso. Acontecem atrás do teclado, num contexto em que alguém teve oportunidade de pensar e decidiu ainda assim prosseguir. Eu sei como é porque também já fui autor de alguns dos insultos e não me orgulho disso. As redes sociais convencionaram o insulto como modalidade desportiva e é importante que às vezes sejamos recordados - eu incluído - de que não temos nenhum direito sagrado à vulgaridade.
Por outro lado, há uma parte de mim que se sente inclinada a discordar de uma sentença como esta, não por entender que alguém deva ser absolutamente livre de insultar outro nas redes sociais ou em outros fóruns, mas porque acompanho a carreira de Sérgio Conceição desde que me lembro, no futebol português e internacional, como jogador e como treinador. Sucede que, por muitos sucessos que conte, e não são poucos, consigo também lembrar-me de muitos episódios lamentáveis. Se a mais fria racionalização me leva a concordar com a juíza, há uma dose de senso comum que me diz que Sérgio Conceição se colocou repetidamente num lugar em que os adeptos sentem-se simplesmente no direito de lhe devolver os impropérios.
Devo fazer uma admissão. Já chamei coisas piores a Sérgio Conceição, mas tive a prudência de o fazer quase sempre entre dentes ou entre amigos que relativizam o vernáculo. Ainda mais importante, evitei fóruns como as redes sociais para o fazer. Outro aspeto ainda que devo salientar é que nem sempre chamei nomes feios a Sérgio Conceição por entender que este se tinha comportado mal ou tornado o futebol português pior. Não sei se todos, mas seguramente alguns leitores sabem como são estas coisas. Às vezes insultamos os treinadores das equipas adversárias porque preparam melhor as suas equipas, outras vezes porque conseguem incutir nos seus jogadores uma mentalidade que se superioriza à dos nossos, ou também porque celebram títulos a dançar no balneário de charuto na boca, ou ainda porque nos esfregam tudo isto na cara em simultâneo. Serve isto para dizer que há alguns motivos para insultar Sérgio Conceição explicados, no essencial, pelos seus méritos desportivos. E até pode ser salutar. A língua portuguesa dá-nos mundos que devemos aproveitar. Terminadas as primeiras 10 jornadas, imagino que alguns portistas também tenham insultado Roger Schmidt, mesmo que este não retribua.
Mas depois há ocasiões em que damos por nós com vontade de dizer coisas feias ao treinador da equipa adversária porque este decidiu tornar o seu «mau perder» mundialmente conhecido e até parece orgulhar-se da agressividade demonstrada ao longo de anos. O Sérgio Conceição do parágrafo anterior é o mesmo que ao longo dos últimos anos tem protagonizado episódios lamentáveis da vida futebolística do país, exibindo uma hostilidade que fomenta o ódio, condiciona árbitros, emancipa o comportamento de muitos atores secundários à sua volta, uma hostilidade que permite a Sérgio Conceição ignorar episódios graves como o de um adjunto que tentou agredir adeptos com uma medalha de vencido; em suma, alguém cujo comportamento quase semanal piora um espetáculo que podia e devia ser mais saudável. É verdade que Sérgio Conceição não é o único a protagonizar episódios destes, mas é seguramente um dos mais obstinados e não parece minimamente interessado em abrandar. Aliás, infelizmente para o futebol português, quanto mais o Futebol Clube do Porto perde, como tem acontecido nos últimos tempos, mais temos de aturar o eufemístico «mau perder» de Sérgio Conceição. Aqui é que a coisa se torna mais complicada: se por um lado todos passaríamos melhor sem o comportamento de Sérgio Conceição, por outro lado quero ver o FC Porto perder mais vezes, mesmo que isso nos prive da civilidade. A culpa, como é evidente, nunca será de quem se limita a ganhar de forma justa.
Há quem por vezes descreva Sérgio Conceição como uma personalidade complexa e emotiva, como se o país desportivo fosse um divã e os adeptos fossem o psicoterapeuta. Só há um problema: os adeptos têm mais que fazer do que aceitar esta forma de estar como parte do espetáculo, e as entidades que tutelam o desporto deveriam refletir de forma intransigente a vontade da maioria dos adeptos, e essa credibiliza o futebol ao invés de o tornar só mais um desporto de combate. Multas e suspensões são muito bonitas, mas pelos vistos são ainda baixas e demasiado curtas. De resto, nestas coisas da psicoterapia, primeiro é preciso que o paciente reconheça que tem um problema e se mostre disposto a resolvê-lo. Afinal, foi o próprio Sérgio Conceição quem há poucas semanas, a propósito de uma visita do FC Porto a um recinto mais pequeno, dizia que gostava de «sentir o calor, o próprio insulto que chega de forma fácil». Pouco depois, na sequência de um mau resultado, a família de Sérgio Conceição foi insultada por mensagem e apedrejada por um bando de selvagens, uma coisa inqualificável de tão asquerosa. Mas eu pergunto, para lá dos insultos, da violência, das piadas e, em especial, para lá das vitórias ou das derrotas: como é possível que alguém continue a aparentar ser tão orgulhosamente parte do problema?