Memorável!

OPINIÃO29.11.201900:53

ESCREVIA ontem o diário Globo, do Rio de Janeiro, que «não há festa que tire o apetite a  este Flamengo». Num dos jornais de maior circulação no Brasil, que bela a imagem criada para definir o que o Flamengo fizera na véspera ao Ceará, no jogo da consagração dos novos campeões do futebol brasileiro. O Flamengo de Jorge Jesus é, afinal, isso mesmo, uma equipa que parece não se cansar de procurar o sucesso e o golo. Uma equipa que joga exatamente… à Jorge Jesus, e bem sabemos como não são assim tantos os treinadores que conseguem que as suas equipas tenham a identidade do treinador.
A verdade é que olhamos para o Flamengo e identificamo-lo com Jesus, ou não é verdade? Não viram este futebol no Benfica? E no Sporting? Ou mesmo no Al-Hilal, que nunca vi jogar mas que me dizem que tinha o mesmo tipo de ADN, para usar uma expressão muito em voga, o tal apetite voraz por jogar bom futebol e por chegar ao golo, que é o que no fundo Jesus quer que as suas equipas tenham sempre.
Disse um dia, já lá vão talvez mão-cheia de anos, no estúdio de A BOLA TV, lembro-me bem, que Jesus fazia (e faz) bem ao futebol, porque com Jesus sabemos sempre que podemos esperar futebol a pensar nos adeptos, que são (no estádio ou na televisão) quem paga o futebol e quem merece tudo.
Com Jesus, e é ele próprio que o diz, é sempre preferível ganhar          4-3 do que 1-0, mas ele não se limita a dizê-lo, procura sempre fazer por isso, e trabalha as suas equipas para isso, e é sempre gratificante ver como as equipas de Jesus - porque é de Jesus agora que tanto e tão justificadamente se fala - lutam para ganhar mesmo quando não o conseguem ou os adversários o impedem, ou porque são melhores ou, como foi o caso, na minha modesta opinião, do River Plate, no último fim de semana, porque lutam exaustivamente, sobretudo, para não deixar o adversário jogar.
Conseguiram os bravos rapazes de Gallardo, durante quase uma hora, impedir que o Flamengo jogasse ao seu nível (que é muito alto) no impressionante Estádio Monumental de Lima, no Peru, onde se jogou seguramente uma das mais épicas finais da Libertadores de que há memória, pela primeira vez, ainda por cima, disputada num único (e, talvez por isso, mais dramático) jogo... Mas ganhou essa vantagem o River Plate sem que, no entanto, tenha alguma vez sido o dono do jogo.
É verdade que foi o River a primeira equipa a chegar ao golo (apesar de muito facilitado...) e ficou, por isso, ainda mais por cima e ainda mais confortável no jogo, sufocando o Flamengo com aquele jeito argentino de pôr a raça acima de tudo, mais a pressão e a luta pelo espaço como se cada metro fosse mais precioso que o seguinte, e exibindo o confronto físico como prioridade das prioridades, por isso cometendo faltas atrás de faltas - no final, o River só fez o dobro das faltas do Flamengo -, como se os rapazes de Jesus tivessem, como diz a tribo do futebol… canela até ao pescoço.
Acontece que muito dificilmente qualquer equipa consegue estar todo o jogo naquele louco frenesim atrás do adversário que tem a bola, e como é muito difícil manter esse ritmo, o River Plate estoirou, e quando estoirou, Deus abençoou o Flamengo com a inspiração divina de um Gabigol que levou ao rubro a nação flamenguista do lado de lá e do lado de cá do Atlântico, tantos terão sido os portugueses, acredito que talvez mesmo alguns milhões de portugueses, que, por fim, sentiram o coração igualmente apertado com a realização do sonho deste treinador português que já merecia a felicidade de um momento como este, tantas vezes ele lhe fora negado no passado pela idiossincrasia de um jogo que tão depressa tem tanto de mel, como de fel!
Estava na hora, pois, de ser Jesus este capitão da própria alma e este senhor do seu destino, deixando a América do Sul a seus pés, e sobretudo boa parte daquele Brasil intelectualmente honesto, capaz de reconhecer que o trabalho de Jesus no Flamengo foi (e é) muito mais do que juntar mais três ou quatro bons jogadores a um plantel que tem muita qualidade, é verdade, mas que não jogaria o futebol que joga se não tivesse um treinador com a exigência de Jesus, com a ideia de jogo de Jesus, com a intensidade de trabalho de Jesus, que faz com que os jogadores acreditem ser melhores até do que realmente são e acreditem que são capazes de jogar muito melhor do que estavam habituados a jogar, a defender tão bem como atacam, a divertir-se muito mais do que esperariam e a conseguir manter a veia de artistas como têm jogadores como Bruno Henrique, Everton Ribeiro ou o próprio Gabigol. Verdadeiramente grande, mesmo sem jogar ao seu nível, acabou por ser o Flamengo desta final da Libertadores, verdadeiramente grande sobretudo pelo coração que mostrou! Um verdadeiro coração de Jesus!

FAZ-ME lembrar o futebol deste Flamengo muito do futebol que tinham aqueles Benficas de Jesus. Podia lembrar vários. Valerá, aliás, a pena lembrar, sobretudo, aqueles que teimam em definir Jesus como um treinador para uma grande primeira época e depois logo se vê, que este mesmo Jorge Jesus, que uma parte do futebol português (pequena, creio eu) vai ter de engolir como um dos melhores treinadores nacionais de sempre, esteve seis anos no Benfica, conseguiu três títulos de campeão nacional, mais o recorde de taças e troféus que sabemos ter estabelecido na história da águia, ainda duas finais da Liga Europa, mais a presença noutras meias-finais e nuns quartos de final, e uns quartos de final da Liga dos Campeões. Ninguém consegue tudo isso numa só época!...
O que Jesus não ganhou no Benfica, ou nos anos em que menos ganhou, o Benfica discutiu algumas competições até à última, perdendo até uma delas - no caso, um campeonato - a segundos do fim do penúltimo jogo, como a história se encarregará de lembrar.
Com Jesus, o Benfica discutia, pois, quase tudo até à última gota - ao contrário do que o Benfica estava habituado nas duas décadas anteriores -, à exceção, na realidade, de uma única temporada, a segunda de Jesus no Benfica, na qual foi eclipsado pelo FC Porto de Vilas-Boas sem apelo nem agravo, num tempo em que me atrevo e sugerir que Jesus, com todas as culpas no cartório que deva, porventura, ter de assumir, esteve longe de ser o único responsável por tão inesperado desastre encarnado na Liga portuguesa dessa temporada.
Em todo o caso, muitos erros cometeu, naturalmente, Jesus nos seis anos em que esteve no Benfica, e com esses erros se foi certamente tornando mais e melhor treinador e mais preparado, tão mais preparado que quase foi capaz de repetir quando chegou ao Sporting o que tão fantasticamente tinha conseguido ao chegar ao Benfica. E tão mais preparado que foi, agora, capaz de fazer no Flamengo o que, talvez só ele, acreditasse que conseguiria, nesta meio louca decisão de conduzir por cinco ou seis meses uma equipa que há anos não ganhava nada e chegou agora ao limiar da alegria para surpresa de metade dessa tribo do futebol...
Espantoso o que Jesus e seus discípulos foram capazes de fazer à equipa do Flamengo, ao ponto de levarem velhas (e conservadoras) guardas do comentário, análise e até treino do Brasil a considerarem esta equipa do Flamengo absolutamente ao nível do que foram algumas das melhores equipas de toda a história do futebol brasileiro, sem que, no entanto, tenha - é a minha opinião - jogadores dotados de um talento excecional como foram Ronaldo Nazário, Ronaldinho Gaúcho, Juninho Paulista ou Pernambucano, Robinho ou Neymar, até mesmo Willian, Óscar, Firmino ou Gabriel Jesus, para não falar, evidentemente, das verdadeiras lendas brasileiras que tanto fizeram sonhar, por exemplo, a geração do próprio Jesus.
É verdade que tem este Flamengo de Jesus um jogador, para mim, absolutamente notável - talvez o mais importante jogador da equipa - como é o volante Willian Arão, uma espécie de Nemanja Matic no seu melhor, o médio sérvio que Jesus transformou no Benfica num dos melhores 8 da Europa; Arão é bem capaz, arrisco, de ter, de momento, lugar em quase todas as equipas de topo na Europa. É verdade ainda que tem este Flamengo de Jesus um guarda-redes excecional como Diego Alves, quase tão bom com os pés como o nosso conhecido Ederson, e ainda tão ágil, sábio e experiente como muitos dos melhores. É verdade que conquistou este Flamengo de Jesus a disciplina, determinação, rodagem, conhecimento, versatilidade, trabalho, raça e classe de jogadores como Rafinha, Filipe Luís ou Gerson, recrutados este verão na Europa, e é ainda verdade que Bruno Henrique é, aos 28 anos, um talento ainda a tempo de mostrar como a sua inacreditável capacidade de explosão pode merecer novas aventuras deste lado do Atlântico, e é, por fim, verdade incontornável que Jesus é foi capaz de fazer de Gabriel Barbosa o Gabigol mais fantástico que toda esta história poderia imaginar.
Mas vão por mim: sem um treinador como Jesus, nenhum deles teria feito o que fez neste Flamengo. Não chega ser bom treinador. É preciso ser, também, especial, como é, de há muito, este Jesus!