Boca aberta

OPINIÃO18.10.201904:02

O Flamengo de Jesus quase já se tornou mais tema de conversa em Portugal do que o Benfica de Lage, o Sporting de Silas - mesmo nos maus lençóis em que está após voltar a cair com o estrondo com que caiu, ontem, aos pés de um modesto mas surpreendente Alverca, que a todos deixou de boca aberta... - ou o FC Porto de Conceição. E creio que só não conseguirá o Flamengo de Jesus ser ainda mais assunto do que o Benfica porque o Benfica, sendo o Flamengo de Portugal, suscita sempre muito debate e muito debate sobretudo quando as coisas não correm como os benfiquistas esperam e desejam, como tem sido o caso do Benfica que se apresentou esta época à Europa, de forma tão modesta e cinzenta, sobretudo em São Petersburgo, que até chegou a meter alguma invulgar impressão.

Parecem os responsáveis encarnados, ou melhor, parece o treinador da equipa encarnada estar suficientemente tranquilo e parece, por isso, Bruno Lage dar pouca importância às duas derrotas da águia na Liga dos Campeões, tão pouca importância que dá até a ideia (é o que parece) de considerar a crítica a essas duas exibições quase obra de maldizentes a quem ele, Bruno Lage, não liga nenhuma, ao ponto de afirmar, como afirmou ainda ontem, numa conferência de imprensa surpreendentemente marcada em cima do joelho - ou seja, à última da hora - para falar, afinal, do jogo de hoje com o Cova da Piedade, ao ponto de afirmar, dizia, que é, ele, o treinador do Benfica, absolutamente imune às críticas e que, portanto, as críticas (que ele, Bruno Lage, quer dar a ideia de nem saber que críticas são) não lhe dizem absolutamente nada.

O que é pena, porque todos aprendemos sempre alguma coisa com as críticas desde que essas críticas façam sentido, como, creio, que fizeram todo o sentido muitas das críticas feitas à equipa do Benfica que se apresentou, tão modesta e cinzenta, nos duas primeiras jornadas da Liga dos Campeões.

Mas escrevia eu que o Flamengo de Jorge Jesus quase domina as conversas do futebol em Portugal, até porque de repente, por cá, a tribo do futebol ficou... sem futebol de clubes e daqui a pouco quase ninguém se lembrará do que aconteceu na última jornada da nossa Primeira Liga..,.

Como no Brasil a coisa não parou, e o Flamengo de Jorge Jesus, única equipa que mantém a incansável luta pelos títulos do Brasileirão e da Libertadores, anda a jogar de quatro em quatro dias (com um total de 9 jogos, imaginem, apenas em outubro...), a malta desta lado de cá do Atlântico acabou por se ir alimentando dos sucessos da equipa do treinador português e dos comentários, pró e contra Jesus, que inundam, de momento, os média brasileiros e incendeiam a paixão dos adeptos.

Ultrapassado, com visível dificuldade e muita felicidade - como aliás o próprio Jesus reconheceu - o obstáculo de Fortaleza, o Flamengo joga agora, domingo, no Maracanã, com o Fluminense, aquele que é, há décadas, um dos maiores dérbis do futebol mundial, no sentido da rivalidade, do fervor, da emoção e do clima verdadeiramente escaldante que apenas rodeia os dérbis especiais como é este histórico Flamengo-Fluminense, que. tal como sucede com outros dérbis, não quer saber de forma física, técnica ou tática, quer apenas saber de paixão, emoção e rivalidade.

Acredito que não será fácil, por exemplo, encontrar um Flamengo-Fluminense jogado no velho Estádio do Maracanã (antes, pois, de 2013) com menos de cem mil espectadores, só para se ter uma melhor perceção do impacto que o duelo tem tido ao longo da história, independentemente do maior ou menor potencial das equipas ou de estarem ou não a discutir títulos. Como tanto se diz no Brasil, o Flamengo-Fluminense deixou de ser um jogo de futebol, passou a ser um acontecimento!

Não há, na realidade, muitos dérbis como o Fla-Flu; há o nosso Benfica-Sporting, evidentemente; em Itália há também o Milan-Inter ou a Roma-Lázio, na Argentina o Boca-River, esse igualmente famoso e histórico Boca Juniores-River Plate, há os dérbis de Madrid, Barcelona, Manchester  ou Istambul.

O Fla-Flu deste domingo tem assim tudo para levar ao rubro o Rio de Janeiro, muito em particular, mas todo o universo do futebol brasileiro, entre adeptos e meios de comunicação, de tão ligados que parecem estar ao fenómeno Jesus. E tem tudo para dominar o foco dos adeptos portugueses, tão interessados em saber até onde vai Jorge Jesus deixar de boca aberta o país do futebol!

A propósito do impacto que Jesus tem tido nos apaixonados e poderosos meios de comunicação brasileiros, não resisto a reproduzir o texto que o jornalista brasileiro Renato Maurício Prado escreveu sob o título De Jesus para Tite, sendo que Tite (Adenor Leonardo Bachi), para quem não sabe, é o selecionador brasileiro, e Jesus, para quem ainda tem dúvidas, é o treinador português que eleva o futebol do Flamengo a um nível pouco visto nos últimos largos anos, e que integra, seguramente, a elite atual dos melhores treinadores do mundo. O texto de Renato Prado é muito bom. Tem graça e não ofende. Ora leiam.

Esse é um texto de ficção. Mas, cá entre nós, bem podia ser real... Jorge é português e adora futebol. Gosta tanto que às nove horas de domingo estava à frente da TV, para assistir ao amistoso mequetrefe da seleção brasileira contra a Nigéria. Viu atentamente os 90 minutos, mais os acréscimos dos dois tempos, e não gostou nada. Por isso, resolveu mandar um e-mail para o companheiro Adenor...

«Caro amigo, espero que essas mal traçadas linhas lhe encontrem em perfeitas condições de saúde. O mesmo, porém, não posso dizer de seu time. O que está acontecendo? Você tem à disposição um dos mais talentosos elencos do planeta e só consegue fazê-lo jogar essa bolinha murcha que estamos vendo? Como é possível? Nem dá para acreditar. Aqui do meu lado, as coisas andam de vento em popa. Muita gente me acusa de só estar conseguindo sucesso por ter uma autêntica seleção nas mãos e até concordo, meu time é bom. Mas, e o seu?

Eu, por aqui, tenho sido obrigado a jogar com meio time reserva - inclusive por sua causa, não se esqueça! E sigo ganhando meus joguinhos, encantando a torcida e me distanciando dos adversários. Já são oito pontos... No último domingo, contra um adversário dos mais difíceis, na casa deles, onde tradicionalmente temos enorme dificuldade para vencer, entrei sem quatro titulares e ainda perdi um quinto no intervalo. Sofremos, é verdade, mas mantivemos a pegada e ganhamos por 2 a 0. Como, então, vocês não são capazes de derrotar os africanos em dois jogos? E ainda perderam para os peruanos...

Quando você se dará conta de que vários dos jogadores da sua panela, desculpe, quero dizer, de seu time base, já não são mais nem sombra do que foram? Sua zaga é lenta, seus volantes passam a maior parte do tempo lá atrás, trocando passes pros lados e seu ataque não cria quase nada. E o Philippe Coutinho? Até quando você vai acreditar que ele pode ser o armador do time? Já deu, né?...

Não quero me gabar, mas, completo, o meu meio-campo é mais objetivo que o seu. E isso nem tem a ver com a qualidade técnica dos integrantes de cada um, mas com algo que, me parece claro aqui de longe, a sua equipe perdeu o prazer de jogar, a vontade de vencer, em suma, o tesão!

Na entrevista coletiva, aliás, deu pra sentir que seu ânimo também já foi pra ‘cucuia’. Que cara de velório era aquela? Parecia um ator canastrão tentando fazer drama em novela mexicana. Vamos lá: o Firmino do Liverpool é muito melhor que o da seleção; o Arthur do Barcelona, idem; o Gabriel Jesus, bem esse é banco no Manchester City e o seu xará aqui é muito superior; o Daniel Alves não joga mais na lateral; o Marquinhos é volante na França; o Thiago Silva já está com o prazo de validade vencendo - vê que nem o PSG fala mais em renovar seu contrato. Estás perdido, amigo!

E o Neymar, hein? Esse é um caso à parte! É tão claro que você, com sua superproteção na seleção, só o faz piorar. Sério, mesmo, quando chegar ao Brasil, se quiser, vem conversar. Vou lhe dar uns toques de como tirar o máximo de cada um, até mesmo daqueles que quase ninguém mais acreditava. Conheces o William Arão? Conhecia! Precisa vê-lo jogar agora. É um monstro! E o Vitinho também vai surpreender muita gente em breve. Pode contar. Tudo questão de orientação certa. E de motivação, claro.

Prezado Adenor, terei enorme prazer em ajudá-lo, mas com uma condição. Que você pare de convocar os meus melhores jogadores nesta reta final do Brasileiro e da Libertadores. Afinal, só os leva para esquentar banco ou jogar 20 minutos. Foi assim com Bruno Henrique, Rodrigo Caio e Gabigol. Não faz o menor sentido. Deixa o meu Flamengo em paz, que eu lhe mostro o caminho das pedras na seleção. Mas na próxima chamada, por favor, leve apenas um rubro-negro: o Rodinei, combinado? Abração e saúde. Você vai precisar…»

PS: Parece o Sporting incapaz de ver saída no beco em que está. A instabilidade do clube é tanta e os cenários tão frágeis, que será cada vez mais difícil contornar a tempestade. Quanto mais o leão tapar a cabeça mais destapará os pés, quanto mais tapar os pés mas destapará a cabeça. Parece metido num bico de obra! Mas pergunto: porque raio não jogou ontem o Sporting com a melhor equipa?