A identidade

OPINIÃO07.01.202206:00

Nélson Veríssimo só pode esperar que a equipa deixe a pele em campo!

RECORDO com muita estima os tempos de jogador de Nélson Veríssimo, agora o treinador principal do Benfica. Recordo, sobretudo, a elegância e o saber estar. O modo muito tranquilo como falava, a discrição com que se comportava, em grupo ou sozinho, a disciplina que parecia impor a ele próprio e o foco que parecia manter em todos os momentos da sua vida profissional. Apesar do que, na vida pessoal, infelizmente lhe sucedeu na semana em que foi chamado a substituir Jorge Jesus - perdermos a mãe é das mais dolorosas experiências da vida… -, Veríssimo foi, do ponto de vista profissional, igual a ele próprio. Sereno e focado. Lá no fundo, ele sabe como esta é das melhores coisas que podem acontecer a um treinador.
É a segunda vez que Veríssimo se vê como treinador principal do Benfica. Caiu-lhe nos braços missão difícil, mas extraordinária oportunidade para quem se desafiou para a vida depois do jogo a ser treinador de futebol.

O que sucede a Veríssimo é o que muitos desejam, ainda por cima com menos pressão e responsabilidade. Pouco a perder e muito a ganhar! Desta vez, aliás, ao contrário do pouco tempo que teve quando rendeu Bruno Lage, Veríssimo sabe que fica, pelo menos, até final da época, o que lhe dá qualquer coisa como cinco meses para, mesmo que caia, poder cair com as suas próprias ideias. E sem a responsabilidade que tinha, evidentemente, Jorge Jesus. Ou seja, Veríssimo pode trabalhar sem pressão. O que, para um treinador, é sempre um luxuoso… luxo!
Além disso, só pode ficar de cadeirinha a ver se os jogadores deixam a pele em campo. Porque a obrigação dos jogadores do Benfica é, naturalmente, deixarem a pele em campo. Não é obrigação agora que saiu Jesus; é a obrigação sempre, com Jesus ou com Veríssimo. E quando há diferenças de atitude, elas podem explicar muita coisa!

Nunca percebi, aliás, muito bem, confesso, por que raio atribuímos aos treinadores a responsabilidade pelos jogadores não deixarem a pele em campo. Não devia ser assim, pois não? Deixar a pele em campo é a obrigação de jogadores profissionais, sobretudo os bem pagos dos maiores clubes. A responsabilidade dos treinadores é organizar os jogadores para que, ao deixarem a pele em campo, o possam fazê-lo com sentido, de modo a estarem mais perto do sucesso. Devia ser assim.  
Na minha linguagem, que não é a de treinador, toco, na verdade, muitas vezes na questão da identidade do jogo que se joga, do jogador, da equipa. Sobretudo, a identidade de uma equipa de um grande clube, porque todas as equipas, e sobretudo as equipas dos grandes clubes, devem refletir a identidade desses grandes clubes que representam; quanto maior o clube, mais vincada é, naturalmente, a identidade.

A identidade de um grande clube forma-se na história, na tradição, nos sucessos, na cultura. Ser do Benfica não é o mesmo que ser do FC Porto e ser do FC Porto não é o mesmo que ser do Sporting. Mas pelo menos um ponto deve ser comum à identidade de todas essas equipas: a responsabilidade de todos os jogadores darem o que têm (e até, por vezes, o que não têm) para chegar ao sucesso, transmitindo em campo essa identidade para os adeptos, porque, na verdade, as equipas jogam é para os adeptos.
No essencial, trata-se de uma equipa mostrar aos adeptos que sente a responsabilidade de representar um grande clube. As equipas dos clubes grandes podem até nem ser, circunstancialmente, grandes equipas, mas têm a responsabilidade de sentir e se mostrarem equipas grandes no sentido da exigência e da responsabilidade.

O que deve, pois, continuar a esperar-se do Benfica - além da identidade, com maior ou menor influência, do estilo e das ideias de Nélson Veríssimo - é a capacidade de os jogadores se ligarem à identidade de uma equipa de um grande clube. Não tem a ver com formação ou com projetos. Tem a ver com deixar a pele em campo. O foco, a mentalidade e o espírito depende de cada um. É aí que tudo começa!
 

CURIOSO como ouvimos muitos dos nossos habituais comentadores e analistas de futebol dizer que João Moutinho está acabado sempre que Fernando Santos aposta nele na Seleção, e quando faz o golo da vitória do Wolverhampton em casa do Manchester United corre tudo a elogiá-lo. Até ouvi dizer-se que Moutinho, afinal, «parece um rapaz de 20 anos»!
Realmente, o futebol é uma coisa quando se ganha e outra, incrivelmente diferente, quando se perde, quase analisamos tudo pelo resultado... E, em muitos aspetos, não parece que isso faça sentido.
Contra mim próprio falo, que nem sempre consigo também combater esta tendência para vermos quase tudo à luz do resultado, como se tudo o que se passa num jogo possa ser observado apenas porque se venceu ou perdeu. Parece até um bocadinho como aqueles árbitros que visivelmente mudam a forma de apitar em função do resultado que se vai registando em cada momento…

Há árbitros assim, e há, como eu, comentadores, analistas, o que quiserem chamar-lhes, capazes, involuntariamente, acredito, de mudarem de opinião só porque a bola bate na trave e não entra ou só porque bate no poste… e entra!
Um jogo de futebol - que é do estamos a falar - é determinado por tantos fatores, resulta de tantas condicionantes, é tão aleatório, multiplica-se em tantos momentos de organização e caos, depende tanto do que é humano, que é, muitas vezes, impossível de ser definido apenas pelo resultado.

Ao contrário do que muitos parecem pensar, um jogo de futebol - pelo menos este, tal como o conhecemos - ainda não se programa num computador, apesar da ameaça da inteligência artificial, do poder da tecnologia e do peso das estatísticas, e como tão bem chamava a atenção o treinador Miguel Quaresma, num extraordinário artigo de análise publicado neste jornal logo a seguir ao Natal, o jogo, e o talento, precisam de organização, mas não é a organização que controla o talento, a inspiração e o acaso.  
Claro que o objetivo de qualquer jogo é ganhá-lo, e nesse sentido devemos sempre valorizar quem vence, independentemente do caminho escolhido. Não há só uma maneira de se chegar à vitória; há diferentes formas de o conseguir, mesmo do ponto de vista da estratégia escolhida por cada treinador e equipa, quanto mais do ponto de vista do acaso, do fortuito, do surpreendente, do impossível de controlar.

O jogo é, pois, qualidade e imprevisibilidade; é organização e é caos; é estratégia e acaso; é erro e é sorte; é a intenção e o fortuito; e, como tanto reclamam, e com alguma razão, os treinadores, ninguém é «o maior» por ganhá-lo ou «o pior» por perdê-lo.
João Moutinho é, evidentemente, um ótimo jogador de futebol, com grandíssima experiência e fantásticas qualidades, e é, certamente, um grande profissional, porque só um grande profissional chega aos 35 anos com esta capacidade ainda de manter bons desempenhos. Mas o desempenho de um jogador estará sempre muito ligado às organizações, aos momentos e aos contextos, e mesmo um jogador sólido como Moutinho - que mesmo já não conseguindo jogar, muitas vezes, a um nível muito elevado, raramente joga mal - vê-se, muitas vezes sem o merecer, inevitavelmente sujeito a ser analisado pelo que o jogo dá.

Se a sua equipa vence o Man. United, e ainda por cima marca o único golo, parece «ter 20 anos»; se, pela Seleção, perde frente à Sérvia, e a equipa falha a qualificação direta para o Mundial, Moutinho é um dos que já estão a mais. Faz sentido? Não, claro que não. O que faz sentido é não sermos umas vezes o oito, outras o 80!
 

DEZ anos depois de o contratar por 15 milhões de euros, o Chelsea pagou mais de 100 milhões para reaver o avançado belga Romelu Lukaku, que entretanto andou pelo Everton, Man. United e Inter de Milão. Há dias, o treinador da equipa, o tão elogiado alemão Thomas Tuchel, decidiu afastá-lo, só, do jogo com o Liverpool, por causa de uma entrevista dada por Lukaku, manifestando insatisfação e, ao mesmo tempo, saudades do Inter. Em Portugal, Tuchel estaria, certamente, tramado, porque muitos dos nossos estimados fazedores de opinião não deixariam de o acusar de lidar mal com a liberdade de expressão do jogador e de estar a desvalorizar e a tratar mal um ativo - como tanto gostam de chamar - que custou mais de 100 milhões de euros!

Tuchel, obviamente, não decidiu a pensar nisso, mas na defesa dos superiores interesses do Chelsea. Tuchel saberá que é um risco enfrentar uma estrela, porque neste industrializado futebol moderno as estrelas pesam muito. Mas mesmo sabendo o risco, Tuchel sabe também que está ainda, e muito, nas graças do clube (levou-o ao título na última Champions) e aproveita o estatuto para impor, e bem, o que deve ser. Tenha Lukaku custado 115 milhões ou não. Sabem, entretanto, o que fez Tuchel num jogo de campeonato - creio que já em meados de dezembro - quando um dos seus avançados falhou o que seria um golo muito fácil e que daria a vitória à equipa? Atirou-se de joelhos para o chão. Em Portugal, estava tramado!