Quem diz que Cabecinha correu sozinha? Ovação foi medalha antes do abraço de Vitória
Até os juízes tiraram o chapéu à carreira de Ana Cabecinha, que terminou em Paris 2024 (COP)

Quem diz que Cabecinha correu sozinha? Ovação foi medalha antes do abraço de Vitória

JOGOS OLÍMPICOS01.08.202415:29

Histórica marchadora portuguesa terminou a última prova da carreira, cerca de três meses de ser mãe; Na meta tinha à espera companheira para quem é exemplo

Paris – Vitória Oliveira acaba a sua primeira participação olímpica, nos 20 km marcha, no 38.º lugar, mas não arreda pé da zona da meta. Pedem-lhe que se dirija à zona mista uma vez. Outra. E ainda mais uma. Mas ela está decidida a ficar e esperar o tempo que for preciso.

A atleta de 31 anos já ali está quando Ana Cabecinha, a única marchadora ainda em prova, passa pela penúltima vez na meta, antes de dar a derradeira volta ao percurso montado na zona do Trocadéro, em Paris.

Se, aos 40 anos, cerca de três meses depois de ter sido mãe, a amiga vai ter força para terminar uma prova com condições duríssimas como as que se fazem sentir naquela manhã em Paris, não é Vitória que vai arredar pé e ser impedida de ser a primeira a abraçá-la na meta.

Venham os voluntários que quiserem, continue o sol de mais de 30 graus a massacrar, ou a humidade do ar, perto dos 60 por cento, a transformar a manhã numa gigantesca sala de banho turco a céu aberto.

Vitória espera. E chora. E puxa por Ana quando ela passa ali tão perto para mais uma volta. Tem também vista privilegiada para todos os adeptos em redor do circuito que vão aplaudindo Cabecinha. E (quase apostamos!) não desvia o olhar uma única vez para a Torre Eiffel que se mostra em todo o esplendor como imagem de fundo do cenário.

De tirar o chapéu!

Ela conseguiu!

Mais de 10 minutos depois de Vitória, e com 20.36m de atraso para a chinesa Jiayu Yang, que ficou com a medalha de ouro, Ana Cabecinha consegue o prémio mais aguardado e corta a meta da última prova em que vai participar, depois de uma carreira de 28 anos na marcha, que lhe valeram cinco presenças e três diplomas em Jogos Olímpicos.

Fá-lo sob, provavelmente, uma das maiores ovações que recebeu ao longo da carreira. Porque todas aquelas palmas são para ela. São a medalha por não ter desistido naquela prova. Mas sobretudo por não ter desistido de se despedir em Paris, como sonhara, mesmo tendo tido um filho há tão pouco tempo.

É pela portuguesa também que todos os juízes junto à meta se levantam e batem palmas. E tiram o chapéu, literal, e figuradamente, à carreira da atleta do Clube Oriental de Pechão.

Ah, e Vitória também consegue!

O primeiro abraço à recém-reformada marchadora e exemplo de sempre, é dela.

E volta a chorar. Choram ambas, abraçadas, um metro à frente da linha de meta, antes de se dirigirem para a zona mista.

É Ana Cabecinha, uma das porta-estandarte de Portugal na cerimónia de abertura destes Jogos quem se vai despedir, mas é Vitória quem parece sofrer mais.

«Nunca escondi que a Ana é como uma madrinha, uma mentora, para mim. É o maior exemplo que eu tenho na marcha», diz, antes de um ataque de choro a interromper.

Vitória Oliveira e Ana Cabecinha abraçadas na linha de meta após a prova de marcha dos Jogos Olímpicos (IMAGO)

Recompõe-se ligeiramente e prossegue nos elogios.

«Tenho muita pena que seja a última prova da Ana, porque é sempre um prazer vê-la competir. Ela ensinou-me muito e posso dizer que mais de metade do meu caminho até aqui aconteceu graças a ela. Porque a Ana teve sempre a palavra certa, mesmo quando eu achava que era impossível chegar aqui», confidencia.

«Foi por isso que eu esperei por ela: porque sei que devo-lhe muito. E estou muito feliz por ter cumprido o sonho de pisar o solo de Paris junto dela», termina.

«Foi melhor do que sonhei»

Depois de ouvir a amiga falar, Ana Cabecinha chega-se à frente e desafia: «Vocês querem fazer-me chorar outra vez».

Mas ela agora está forte. Mais forte do que nunca, mesmo que a despedida não tenha sido feita nas condições físicas que desejava, por razões óbvias.

«Estou muito feliz por não ter baixado os braços, por ter todos os dias um bebé em casa, que é tranquilo e me tem deixado descansar e treinar, e conseguir estar aqui. Tive dias mais complicados, claro, é um recém-nascido, mas é a melhor medalha que uma mulher pode ter», descreve.

Aquilo que a atleta de 40 anos não esperava era sentir o carinho de centenas de pessoas que não arredaram pé, mesmo havendo apenas uma atleta em prova.

«Foi muito melhor do que eu tinha sonhado. Deu tempo para tudo e só foi pena não ter tido o meu filhote à chegada. Nestas últimas duas voltas, desfrutei o máximo que pude para absorver estes Jogos Olímpicos. Foi a melhor sensação que podia ter como atleta», garantiu, antes de falar sobre a ovação de que foi alvo nos últimos metros.

«Parecia que tinha vencido a prova e foi maravilhoso. Só tenho de agradecer a todos os adeptos da marcha que estavam no percurso. Aos portugueses e aos outros. É bom saber que a minha carreira valeu a pena. Que deixar a marca na marcha valeu a pena. E que estes 28 anos valeram a pena. Mesmo com tudo o que perdi ao longo do percurso, como o meu pai e a minha mãe, que infelizmente não estão cá para ver a grande ovação que tive nesta última volta. Estou mesmo muito feliz!», resumiu, antes de deixar a zona mista para o tão desejado abraço ao filho Lourenço.

Ana Cabecinha e Vitória Oliveira no final da prova de marcha dos Jogos Olímpicos (COP)