O sistema é relação
Professor universitário jubilado e filósofo, Manuel Sérgio escreve na Tribuna Livre, um espaço de opinião de A BOLA aberto ao exterior
Tudo é sistema — digo eu e dizem outros que sabem mais disto do que eu! Se bem compreendo a ideia de sistema, podemos concebê-lo como uma totalidade organizada, com inter-relações constantes entre os elementos que o constituem. Como se aprende no Método-1, de Edgar Morin: «Fora dos sistemas, há apenas dispersão particular (…). Aquilo a que chamamos natureza não é outra coisa senão essa estranha solidariedade de sistemas emaranhados, construindo-se uns sobre os outros, pelos outros, para os outros, com os outros, contra os outros.» Portanto, um chefe prepotente, que se instalou na convicção que não tem dúvidas, porque vive de princípios absolutamente indiscutíveis; ou um treinador desportivo que vive no conforto de critérios que julga superiores ao tempo e à história — hoje, ambos mostram uma redonda ignorância do que é a Verdade, do que é a Certeza. Certeza só há uma: a Verdade não existe no reino do humano e que nos encontramos tanto mais próximos da inalcançável Verdade, quanto mais, simultaneamente, praticarmos e dialogarmos e estudarmos a área do conhecimento em que nos consideram (e nos consideramos) especialistas. Ninguém, nem nenhuma instituição, possuem a Verdade. Uma Verdade possuída não passa de uma trapaça ou de um logro ou de uma ilusão de um doente mental. A Verdade é um processo em constante construção e, porque é humana, não é uma verdade a-histórica, imperturbável, inamovível, mas um processo em incessante dialética, em imparável devir. Daí, a necessidade absoluta do estudo e do diálogo. A ausência do estudo e do diálogo empurra-nos a verdades inquestionáveis, ou seja, a erros imperdoáveis, ao dogmatismo afinal, que mais não significa do que esclerose e esterilidade do poder criador. Como já o assinalou Bachelard, uma cabeça que se julga bem feita é uma cabeça mal feita que tem a necessidade de ser refeita.
Com o estudo, com o diálogo e quando consciencializo que sou a parte de um todo, surgem em mim, como por milagre, qualidades inesperadas, inéditas e novas, as qualidades chamadas emergências, que assim se definem, em Edgar Morin: «Emergências são as qualidades ou propriedades de um sistema, que apresentam um caráter de novidade, em relação às qualidades e propriedades dos componentes considerados isoladamente, ou posicionados de maneira diferente num outro tipo de sistema». Reside na ideia de emergência pedra angular do pensamento sistémico, pois que só há emergência, novidade, progresso, quando há diálogo, inter-relações, sistema. Quando um dirigente desportivo (fenómeno evidentíssimo no futebol) se desentranha em explicações públicas às atuações menos felizes da sua equipa técnica, está normalmente a desviar as atenções dos sócios e simpatizantes da verdadeira patologia de que sofre o seu clube. Porque, por mais que se vistam com as lantejoulas da retórica, a sua presença nos pedestais, nos lugares-de-honra da vida desportiva portuguesa significa, antes do mais, que há, aqui e além (há muita gente séria no futebol) demasiada ignorância e um pavoroso oportunismo, em certos dirigentes do futebol. De facto, se tudo é sistema; se tudo é uma unidade complexa de vários elementos: as culpas das crises que vergam os clubes não se refugiam só nos treinadores (ou nos árbitros), mas nos sistemas que os clubes são. E começam, demasiadas vezes, na incapacidade de auto-crítica dos seus dirigentes e na falta de hábitos de estudo de alguns seus técnicos e na ausência do velho (e dizem que extinto) amor à camisola nos jogadores, que o profissionalismo extinguiu. Esperava-se de algumas pessoas que tivessem uma mensagem a dar, um sólido projeto a desenvolver, uma obra a construir. E, por vezes, terminam os seus mandatos, com pouca mensagem, com limitadíssimos projetos e com um currículo gotejando inêxitos. Mas com muito ressentimento e muito azedume…
Já fomos campeões europeus de futebol; é português o melhor jogador do mundo; José Mourinho, Fernando Santos e Jorge Jesus (e mais nomes poderia citar) podem ombrear com os melhores treinadores da atualidade; os treinadores portugueses têm um árduo, mas vitorioso, caminho percorrido, ao serviço de clubes estrangeiros; o Dr. Fernando Gomes tem obra inigualável ao leme da Federação Portuguesa de Futebol — não nos falta portanto conhecimento, ou seja, teoria e prática, quero eu dizer: ciência e consciência; liderança e capacidade de comunicação; ganhar condição ética, pela competência, pelo trabalho, pela solidariedade. Os economistas, se bem leio, procuram ensinar que é informacional e global a economia capitalista: é informacional, porque a produtividade e a competitividade dos seus agentes muito dependem da sua capacidade de criar e aplicar informação, baseada em conhecimento. É global, porque tudo se organiza, principalmente a competitividade, à escala global. Mas é preciso não desistir na luta persistente, na esteira de Edgar Morin, de uma ciência com consciência. É que o progresso, no âmbito da tecnociência, como esconder-se? E, no entanto, é também inquestionável o recrudescimento do desemprego e de uma alta competição marginalizante. Deve-se à tecnociência progressos fundamentais no bem-estar de cada um de nós, mas ainda se investe demasiado na ignorância das maiorias como forma de manutenção de um status quo manipulador e alienante. Alguns agentes desportivos prestam-se a situações ridículas, não por falta de boa vontade, mas porque a alta competição, sem o apoio de certos valores e de um rigoroso espírito crítico e auto-crítico, deixa, mais tarde ou mais cedo, nos homens (e mulheres) que dizem servi-lo, uma imagem degradada, amesquinhada de si próprios — que afinal não merecem, porque não é fácil gerir a alta competição desportiva, onde há (suprema contradição!) mais irracionalidade do que racionalidade…
Tudo é sistema, quero eu dizer: numa situação de crise, todos os elementos do sistema, por ação, ou ausência dela, por desconhecimento, por cegueira ou por interesse — todos têm a sua quota parte, na crise que se lamenta. Há um escopo primacial a transmitir: é preciso mudar de paradigma! Por outras palavras: é preciso uma revolução paradigmática. Só que uma revolução paradigmática depende de condições históricas, sociais e culturais, que nenhuma consciência poderia controlar. Mas depende também de uma revolução na consciência das pessoas. «O novo paradigma só pode conceber-se e compreender-se, através de um pensamento complexo. Só que este ainda não está enraizado na nossa cultura [Edgar Morin]». E, por isso, em situações de crise, ninguém quer esclarecer o que parece disperso, vago, informe. Ninguém tem culpa: a culpa é sempre do outro. E, porque ninguém tem culpa — a culpa não existe, não há transformações a fazer. E assim fica tudo na mesma — porque não há culpados, ou seja, ninguém põe em causa as suas certezas, os seus axiomas, os seus métodos. Por outro lado, os discursos permanecem exteriores uns aos outros, recusam o necessário diálogo, ou a indispensável interdisciplinaridade. No entanto, tudo é sistema: voluntaria ou involuntariamente, a crise (e as causas) está em todos os elementos da mesma totalidade. Não há ideias puras, não há factos puros, não há homens puros. Dentro de cada um de nós, o trigo e o joio crescem inextrincavelmente unidos. Não escondamos o joio que há também em nós… para que a crise se resolva! Entretanto, tudo é sistema: tudo está em tudo! Mas, principalmente no âmbito social e humano, tudo é sistema, porque tudo deve converter-se em relação fraterna.