Lamine Yamal festeja diante do Betis
Lamine Yamal festeja diante do Betis
Foto: IMAGO

Yamal veio ao mundo para surpreender-nos a todos

OPINIÃO10:00

Jovem extremo do Barcelona nasceu para ocupar o vazio deixado por Messi e Cristiano Ronaldo, mais até do que Haaland ou Mbappé. E já está a assumi-lo

Lamine Yamal é a melhor notícia que o futebol de hoje pode ter. Digamo-lo baixinho, o suficiente para que não haja risco de que com a corrente de ar se parta, como aconteceu com o novo-Cristiano: Ansu Fati enchia litradas de ketchup com golos para depois as despejar, tal e qual o português, diante de qualquer adversário que ousasse sair-lhe ao caminho.

Só que as lesões empurraram-no para fora do trilho, perdeu o cognome, nome próprio e apelido, e hoje não há mais do que ténue esperança de que, um dia, volte a ser o mesmo e nos faça esquecer todo o tempo perdido. Se o guineense, nascido em Bissau e feito homem entre Sevilha e Barcelona, enquanto crescia e se via espanhol, foi traído pelo próprio corpo e talvez pela precoce sentença, não ousemos, para já, mais do que apenas murmurar, quase sem mexer os lábios, um «o rei está morto, viva o novo rei, o novo Messi da nossa vida» sobre aquele que desde muito cedo aponta ao céu.

Mesmo que não haja nomes, corpos e jogadores iguais e dois raios nunca caiam no mesmo lugar. Mesmo que não acreditemos em destino ou karma, ou sequer na ira dos deuses, de ressaca depois de mais uma rave no Olimpo, provavelmente organizada por Best e Maradona. Mesmo que só evitemos passar debaixo de escadas e amaldiçoemos gatos pretos escondidos de rabo de fora, debaixo dos automóveis ainda de motor quente estacionados ao lado do nosso, por mero hábito familiar. Ou fechemos as tesouras abertas e viremos os chilenos virados ao contrário pelo hábito de a avó materna seguir o diabo pela casa fora para esconder-lhe depois o rasto. Mesmo com tudo isso e mais alguma coisa, não podemos de nenhuma forma arriscar.

Yamal é o Messi do pós-Messi, do pós-apocalipse, e que ninguém lhe diga que não tem de fintar o mundo. Claro que tem. Que o finte. E, se possível, chegue à baliza e volte para trás para que o finte de novo, sem o castigo daquele vizinho do século passado que, miúdo, tropeçou numa raiz e caiu, corpo chapado e óculos à frente, em cima de restos de uma fogueira de santo popular, deixada para trás no meio do pelado, na altura também partilhado com espetáculos e jogos da apanhada. E romances menos futebolísticos.

Tomara que todos nós soubéssemos fintar o mundo. Mas, se não pudermos fazê-lo todos, pelo menos que o faça ele. Se o conseguir, sabemos que teremos genialidade que nos conforte durante a velhice, nos extraia da monotonia da nossa inevitabilidade, que continue a dar-nos razões para escrutinarmos o campo à procura de algo diferente, alternativo, não mainstream, e sobretudo inspire outros Lamines, como a mesma dose de irreverência e confiança, e, ainda, com a mesma infinita ilusão.

Com mãe da Guiné Equatorial e pai marroquino, Yamal cresceu a querer ser Messi no bairro de Rocafonda, que alberga extensa comunidade africana e onde hoje é ele o modelo a seguir. Não Léo, Lamine. A pulga argentina aí já caiu do trono. Mais. Ele é o símbolo de esperança de jovens ligados por forte identidade, simbolizada em três números, muitas vezes presentes nos festejos dos seus golos: o 304, últimos dígitos de um código postal. 08304, Rocafonda, Mataró, Catalunha.

O Barcelona foi-se abaixo sem ele, porém agigantou-se de novo assim que recuperou a forma e voltou a querer fintar este mundo, o outro e os arredores. Entre os dois momentos duas goleadas em forma de lição ao eterno rival Madrid. Foi ele quem deu a contundência a Casadó, a Gavi, a Pedri, quem deu a corda a Raphinha, trinta vezes mais jogador do que o passou por V. Guimarães, Sporting, Rennes e Leeds – e um caso de estudo precisamente pelo tanto que evoluiu –, para ambos a esticarem em conjunto até Lewandowski. Um ataque infernal.

Ter bola e ir para cima. Fintar. Abrandar. Acelerar. Dar dois passos e rematar. Um, dois passos e cruzar largo. Bola a cair ao segundo poste. Alguém toca? Que ninguém toque! Acelerar. Virar para dentro. Atirar. Em arco. Combinar. O bruá. Tantas saudades de Camp Nou! Um, dois. Tricotar. Passar. Um. Dois. Três. Esperar o momento certo e… Courtois totalmente fora dela. Novo bruá. Ra-ta-ta! De qué planeta viniste? Génio, génio...

Quanto de Messi há em Lamine ninguém saberá. Quanto de Diego em Léo, de Diego em Lamine? É impossível que não haja nada. Mais até do que em qualquer outro projeto que apareça. Contudo, se aparecer, tenho de estar desperto. Lúcido.

O problema é ter de bater na madeira para quebrar qualquer mau olhado sussurrado à distância. Por ser único, temos medo até que se constipe, que se estrague. Pergunto: será que os preparadores físicos não duvidam às vezes se estão a tomar as decisões certas e a exigir os comportamentos corretos? Se músculo a mais (e não mais músculo) não abrandará a velocidade ou retirará a elasticidade, a capacidade de mudar rapidamente de direção?

A fragilidade física de Lamine é a sua maior força e, felizmente, na Catalunha privilegia-se o cérebro à idade ou à experiência. Não seria fácil ter um Yamal com esta idade e já tanto conquistado noutra equipa no mundo, à exceção, claro, do Ajax. Em Portugal, por exemplo, onde se prefere idade à qualidade – e basta olhar para os casos de Vitinha, Mora, Schjelderup e Prestianni –, seria, sem ilusões, impossível. Há sempre alguma coisa. É demasiado baixo. Ou magro. Lento. Tímido. E enquanto acontece, os nossos adversários sorriem perante a proliferação de tantos Velhos do Restelo.

Cristiano foi gigante, Messi consegue entrar em todas as discussões para melhor de sempre e ganhar muitas delas, e Yamal será apenas Yamal. É contexto, a soma de culturas e experiências, e uma alma, porque almas admito, mesmo sem ter espaço na minha vida para céu e inferno. A dele propõe-se a dominar o mundo. Mais do que Mbappé ou Haaland. Acredito que irá consegui-lo. Porque antes de ser o novo Messi já era Lamine Yamal, batendo até aí recordes de precocidade. Não há dúvidas de que o miúdo chegou para nos surpreender a todos e algo me diz que ainda não parou.