Andrés Iniesta em ação num jogo do Barcelona, clube que representou de 1996 a 2018
Andrés Iniesta ganhou tudo o que havia para ganhar no futebol, mas nem isso o 'livrou' de uma depressão
Foto: IMAGO

O Futebol Dói!

OPINIÃO25.03.202506:40

Tribuna Livre é um espaço de opinião em A BOLA, esta da autoria de Sónia Soares Coelho, Fundadora e CEO da Clínica Mentanalysis. A autora opta por escrever ao abrigo do Antigo Acordo Ortográfico

O número de atletas que procura ajuda, nos nossos consultórios, está a crescer drasticamente! Percebem, cada vez melhor, que as abordagens superficiais, que visam resultados imediatos, à la longue, não funcionam. X, 23 anos, refere, numa das nossas primeiras sessões de Psicoterapia: «Estava sentado no balneário, os gritos dos meus colegas à volta. Um dos jogos mais importantes da temporada. Sentia a adrenalina disparar, mas a ansiedade comia-me. E se não conseguir jogar como espero? O peso das expectativas sufoca. A expectativa do treinador é alta. A do meu pai ainda maior. Querem que joguemos com garra, que mostremos uma performance que justifique as horas de treino. E nós também, claro! Quem não quer?! Sentia a pressão crescer a cada segundo. Um nó na garganta, o coração disparado... doía-me o peito. Quase não tinha pregado olho. O que acontece se não cumpro? O medo de desapontar a equipa e os adeptos rebenta comigo! Eles acreditam em mim... e se eu falhar? E se não renovo? A imagem do túnel, depois aquela gente toda a olhar para mim.... Tinha que me concentrar, mas os pensamentos intrusivos invadiam-me, a insegurança aumentava. A imagem de errar um passe crucial, falhar uma finalização perfeita, sempre a bater. Só a ideia de ser o motivo de uma derrota.... é absurdo como um mero erro destrói, nas redes sociais e na imprensa. Lembrei-me do que vamos falando, das nossas sessões. A importância da rigidez do meu pai, para mim... o quanto já consegui atingir... o colo da minha namorada... e o seu.... Lá fui acalmando, aos bocadinhos...»

Da nossa experiência, mais de metade das jovens esperanças falham o seu caminho por, como se diz no desporto, falta de força mental. Tudo começa com um desenraizamento do seu ambiente familiar, ainda criança, mudando todo o seu modus vivendi para ingressar nas escolas de formação dos grandes clubes. Longe do colo da mãe, da família (por vezes, ela própria, desestruturada) há um longo caminho a percorrer. Às exigências físicas da profissão soma-se a procura de figuras de identificação e lares provisórios que lhe sirvam de chão. Surgem muitos medos. Medo de uma má apresentação. Medo de uma lesão (outro grande bicho papão). Medo de não corresponder às expectativas. A ansiedade sobe, novo medo de diminuição da performance, ainda mais ansiedade sobre o desempenho futuro, e tudo de novo! Bolas de neve conduzem a avalanches!

O futebolista moderno vive sob uma pressão asfixiante. É um gladiador dos tempos modernos. Lida com expectativas não apenas em relação a si próprio, mas também por parte de treinadores, de familiares, de fãs, dos media, etc. Os verdadeiros exemplos de bullying estão nos comentários demolidores, nas redes sociais. Tudo isto enquanto treina cada vez mais, cada vez mais intensamente. Isolado no seu mundo de pressão constante, cai muitas vezes na solidão e, logo a seguir, na depressão.

A vida de futebolista é uma vida de nómada. Hoje aqui, amanhã acolá. Mudanças de clube, de país, de língua, de clima, de hábitos. Há que adaptar e não chorar. E a Família? O Natal? Treina-se. O aniversário do filho? Há jogo. A escola? Que se adapte o miúdo. O pai que está doente? Terá que esperar pelo fim da época. A avó morreu? Paciência; já estava velhinha! E a reforma, sempre precoce, nestas profissões, lá pelos 30?

Mario Gotze, o homem que deu o título mundial à Alemanha em 2014, sabe do que fala: «É um assunto que raramente é discutido, mas representa um problema sério. Muitas pessoas caem em depressão quando penduram as chuteiras. O mais importante ao se reformar é evitar cair no abismo, num buraco negro; esse deve ser o seu objetivo. E não me refiro apenas ao aspecto económico.»

A patologia mental espreita, mesmo em momentos altos. Andrés Iniesta foi campeão de tudo, mas isso não lhe serviu de muito: «Tinha todas as condições positivas que se possa imaginar, mas começamos a sentir-nos mal, a não sermos nós próprios, a sentir um vazio geral e não sabemos o que se passa porque os testes que fazemos são perfeitos.» Descreve o desalento, o sentimento de vazio e a anedonia, essa incapacidade de sentir prazer e aproveitar as coisas boas, tão comum, nos deprimidos: «Quando estava a lutar contra a depressão, a melhor hora do dia era quando ia para a cama. Perdi a vontade de viver. Abraçava a minha mulher, mas era como abraçar a almofada. Não sentia nada». Nessa altura, o jogador procurou ajuda, que mantém, até aos dias de hoje: «Continuo a ir à terapia porque preciso de me encontrar comigo mesmo.» Repete, insistentemente, que a Psicoterapia lhe salvou a vida.

Iniesta, muito depois do adeus

9 outubro 2024, 06:30

Iniesta, muito depois do adeus

Um dos melhores deste século colocou agora um ponto final na carreira, aos 40 anos, mas já há seis que nos despedimos dele. Amor ao futebol fê-lo estender este adeus ao máximo e bem longe

São inúmeros os atletas com superpoderes, com surpreendentes testemunhos acerca das suas batalhas para se manterem sãos, mentalmente. Tantos, que não cabem neste texto. Atletas em início de carreira, veteranos ou aposentados. Parece quase milagre haver saúde mental, no futebol! É uma área sobre a qual todos — atletas, treinadores, clubes e os seus altos dirigentes, departamentos de formação, etc. — devem reflectir e investir.

Outro enorme perigo espreita! O futebol continua a ser abordado superficialmente, ignorando os processos profundos que determinam a personalidade e a patologia do jogador. Os clubes têm Gabinetes de Psicologia que parecem centrar-se no desempenho, o que é muito insuficiente!

O que sobressai é uma abordagem que se centra no consciente, no que é cognitivo e racional, na aprendizagem. Como se o desempenho se baseasse só na vontade! Não vale de nada dizer a um deprimido: «Anda, anima-te! Vê tudo o que tens de bom na vida e sorri!» Nem tão pouco, a um ansioso: «Visualiza o golo e vais ser capaz!» Proliferam as soluções instantâneas, mágicas e falaciosas, os coaches desportivos fabricados em whorkshops de fim-de-semana.

Vendem-se ilusões, em vez de soluções. Necessitamos de análises profundas que potenciem o crescimento holístico do atleta e do clube. Abordagens superficiais podem funcionar com arranhões. Quando há problemas mais graves, ou se quer potenciar os resultados, é imperioso explorar as motivações internas, traumas e ansiedades que influenciam o desempenho individual e a dinâmica da equipa, rumo a uma melhor coesão do grupo e resiliência emocional.

É enorme, o sucesso da Psicoterapia Psicanalítica/Psicodinâmica em atletas de alto desempenho. Mas é só para gente grande, forte. A Psicoterapia é para gente assim. Com problemas, mas também com capacidade de os ultrapassar! Os relatos dos grandes craques e a evidência clínica que observo no consultório confirmam-no.

O bem-estar que encontram não se limita ao âmbito desportivo, alastrando para todas as áreas das suas vidas. A Psicanálise permite um autoconhecimento que prepara para enfrentar toda e qualquer adversidade. No futebol e na vida. Possibilita a regulação emocional, durante a competição, tornando possível controlar os pensamentos negativos, inibidores de performance. Evita as situações em que o atleta manifesta, com sintomas físicos, a sua dor mental: as psicossomatizações.

As diarreias, as crises de ansiedade e faltas de ar, os vómitos, os ataques de choro, entre outros, desaparecem. Urge, então, a procura de métodos psicoterapêuticos que se foquem na etiologia, que vão à raiz dos problemas, em detrimento de meras operações de cosmética! Porque, sim, o futebol dói, mas não tem que doer para sempre.