No intervalo da histeria
António Salvador é atacado por benfiquistas, portistas e sportinguistas. É sinal de que é incómodo. De certa forma, este é o melhor dos elogios
O trabalho de António Salvador no SC Braga podia ser visto de três ângulos: o desempenho desportivo nacional e internacional da equipa, o património criado pelo clube e o protagonismo que o emblema foi ganhando em vários fóruns e plataformas, a reboque do sucesso em campo. Mas há outro barómetro que ajuda a caracterizar a sua obra: é um presidente atacado por benfiquistas, portistas e sportinguistas (e também vimaranenses, mas isto muito mais a ver com a histórica rivalidade com o vizinho). Quando o líder de um clube que não dos três grandes entra com os dois pés neste espetro, é sinal de que incomoda. E ser incómodo é, de uma certa forma, o melhor dos elogios.
Salvador aprendeu, ao longo de quase 20 anos, a usar o jogo de cintura. Nem sempre o que dizia publicamente tinha uma correlação com a realidade e ainda hoje, quando o ouvimos a falar sobre assuntos do mercado, por exemplo, somos sempre obrigados a fazer segundas leituras. Faz parte da persona. Como todas as lideranças longevas, Salvador cultivou vícios e confunde-se com o próprio clube, um clube que por vezes dá a sensação de ser maior nos seus sonhos do que na sua projeção social.
No atual defeso, Salvador vive agora o momento em que os benfiquistas lhe apontam o dedo devido aos remoques deixados a Rui Costa por causa das negociações por Ricardo Horta, em contraponto com a aparente facilidade em negociar com Pinto da Costa a transferência de David Carmo. Os portistas que noutras circunstâncias o acusaram de colar-se ao Benfica do amigo e parceiro de negócios Luís Filipe Vieira aplaudem-no agora por recuperar deferências antigas. Faz parte do folclore e é assim que enquadro a polémica à volta do prémio de 500 mil euros que o SC Braga poderá ganhar por cada campeonato conquistado pelo FC Porto nas próximas cinco épocas, na sequência da viagem do promissor central português do Bom Jesus para os Aliados.
Admitindo que o tema possa ser objeto de discussão, o problema não está, obviamente, no meio milhão de euros em causa nem em qualquer outro prémio de desempenho coletivo da entidade compradora. A questão de fundo prende-se com um problema de credibilidade. Ou melhor, da falta de credibilidade de uma competição que tem condições para ser muito mais atrativa do que é.
Imaginemos que acontecia em Portugal o que se verificou na última jornada da Premier League da temporada passada, quando o Aston Villa defrontou o Manchester City. Perdendo o jogo, os villans receberiam €15 milhões porque esse era um dos prémios por objetivos coletivos negociados na transferência de Jack Grealish para o Etihad. Antes do jogo, o que se discutia era o quão desejoso estava o treinador do Aston Villa, Steven Gerrard, de ganhar o encontro, perder €15 milhões para o clube e entregar o título ao seu Liverpool; por aqui, estariam todos a dizer por quantos iria perder o clube de Birmingham. Recordando o encontro, foi uma loucura e um hino à honra: até aos 78 minutos, os citizens perdiam em casa por 0-2, conseguindo a reviravolta em cinco minutos loucos que vão ficar na história da Premier League. O que ficou desse jogo, além da embriaguez coletiva de uma vitória de contornos épicos, foi a luta que o Aston Villa deu até a fim.
São episódios como este que deitariam por terra os painéis da GritariaTV ou os juízos de valor proferidos ao sabor da espuma do momento. Falta ao futebol português mais Villas. E para que isso aconteça talvez valha a pena ler, reler e ouvir com atenção as ideias apresentadas anteontem por António Salvador para revolucionar o futebol profissional. Não tanto pelo teor das mesmas (não representam grandes novidades) mas pelo facto de ter sido um clube a querer levar uma discussão séria para a frente, pensando no todo e deixando, mesmo que só desta vez, de se agarrar à enxada com que cultiva o talhão do seu quintal. O diagnóstico traçado pelos minhotos é um documento que devia ser tratado como prioritário. «É importante atuar antes da centralização dos direitos televisivos. Não podemos vender um produto ultrapassado», afirmou António Salvador. Desconfio que esta frase será rapidamente abafada pelos habituais mestres da histeria.