Deixem lá João Pereira treinar
João Pereira vai manter a aposta na formação e tem vários jovens debaixo de olho (SPORTING CP)

Deixem lá João Pereira treinar

OPINIÃO08:15

Esperar uma década ou mais para terminar um curso, que afunila nos últimos níveis e conta com anos de experiência como pré-requisito, é sem dúvida uma eternidade

Ouvimos falar muito da Associação Nacional de Treinadores (ANTF) quando um jovem técnico chega a um clube e não tem as qualificações certas para trabalhar. Então, repete-se o habitual: a ANTF não reconhece X como técnico principal do clube Y. Aconteceu com Ruben Amorim, que se sacrificou em defesa dos seus jogadores, então no Casa Pia, e o caso acabou em multas e suspensões, e agora com João Pereira, precisamente o seu sucessor no Sporting, que já sabe que raras indicações poderá dar a partir do banco e que um dos seus adjuntos terá de fazer de conta que é o boss em múltiplas ocasiões, sobretudo frente às câmaras de televisão.

O antecessor, confrontado com o tempo que se perde em Portugal até se ser certificado, acabou por recorrer à federação da Irlanda do Norte (Escócia também costuma ser opção válida), tal como muitos dos que não querem estar literalmente anos a fio no desemprego, apenas a estudar, até poderem finalizar o último nível. A maior parte são ex-jogadores, que devido às exigências de um futebolista profissional tiveram de lidar com a falta de disponibilidade para os cursos e com a escassez de vagas de inscrição (esta ainda mais preocupante, ainda mais nos últimos degraus) nos mesmos. A entrada num outro mercado de trabalho, visto como contíguo ao anterior, fica adiada sine die.

Não sou defensor de que todo e qualquer jogador tem conhecimento de facto para vir a ser um bom treinador, como o escrevi já várias vezes, até sobre outros atores. Há sempre alguns que foram apreendendo conceitos de quem os treinou e se mostraram curiosos o suficiente para aprofundar conhecimentos por si próprios no dia a dia e desenvolver competências, porém a maioria não aponta de imediato para esse caminho e até entende a tática como o que o jogo tem de menos interessante.

Por outro lado, uma nova corrente de treinadores que não teve de facto grande impacto no relvados – alguns por falta de talento, outros devido a lesões graves –, e que durante muitos anos contou com José Mourinho como bandeira, encontrou, pela agenda mais livre, o seu espaço e desenvolveu um perfil teórico, que conquista a atual preferência dos maiores clubes. A Alemanha, por exemplo, escancarou por completo as portas a esse estereótipo, o que também abriu caminho a um novo tipo de futebol, mais moderno, enérgico e competitivo. Uma nova tendência num dos países mais conservadores da Europa.

No que diz respeito aos ex-futebolistas, a experiência teria naturalmente de contar, embora não deva ser eliminatória, caso não exista. Também a falta de tempo para queimar etapas ainda com as chuteiras nos pés deveria ser considerada no momento em que oportunidades de uma vida, irrecusáveis, surgem pela frente. É, como em quase tudo o resto, uma questão de bom senso, sendo que a existência de regras também deva ser vista como obrigatória. É isso que distingue instituições modernas das que não o são.

A posição da ANTF, apesar de rígida, nasce da ideia legítima e fundamental de proteger o jogo de profissionais de menor qualidade, filtrando-os. Traduzindo por uma linguagem mais comum, estipula que só se pode entregar as chaves do automóvel, seja uma 4L ou um Ferrari, a quem possua carta de condução. No entanto, o organismo deverá igualmente colocar em perspetiva que uma licença para conduzir dura poucos meses e não anos a alcançar e não valida apenas bons condutores, embora possa ser retirada a quem cometa demasiadas infrações. Os cursos habilitam, mas não levam a adquirir capacidade de liderança, comunicação, criatividade, empatia e muitas mais valências que um treinador deve possuir.

No caso de Ruben Amorim, se o atual treinador do Manchester United estivesse limitado a realizar o curso em Portugal, a brilhante e histórica passagem pelo Sporting ainda não teria acontecido, se é que alguma vez existiria. Poderia entretanto ter desistido ou se tornado noutra coisa qualquer.

Não haverá Amorins em todos os casos, todavia é sobretudo o seu que deveria fazer a ANTF olhar com cuidado para o fenómeno e, em vez de se preocupar tanto com o policiamento, encontrar soluções em conjunto com a Federação Portuguesa de Futebol que resolvam ou atenuem a entropia. Não parece justo ter de esperar vários anos, com quebras de continuidade nos níveis mais altos devido à falta de vagas para prosseguir, para simplesmente se desempenhar a função.

Para se poder ser acutilante na defesa da profissão e do futebol português em geral, será sempre necessário simplificar o processo antes de avançar para os castigos. Porque depois, no final, o treinador será sempre quem treina e as regras, porque são contornáveis, servirão apenas para manter as aparências, o que dificilmente será aquilo que se pretende.

Como já escrevi, não consigo dizer se João Pereira é ou não um bom treinador, ou sequer se virá a sê-lo mais tarde. É, obviamente, um risco para o Sporting. Contudo, este não desapareceria com o curso UEFA Pro ou qualquer outro e, mesmo que o projeto falhe, terá de persistir a dúvida sobre o contexto. Mesmo que para o técnico, a herança seja extremamente pesada e os rótulos se colem com muita facilidade, qualquer que seja a situação. Se ganhar será porque aproveitou o que tinha sido antes feito e se perder nem sequer isso conseguiu fazer. É o futebol que temos.

Eventualmente, até veremos João Pereira com o diploma final em inglês um dia, sobretudo se correr bem e quiser ter o uso pleno de todas as suas funções, sabendo todos nós que a proximidade com os jogadores junto à linha para dar indicações é a única, porém limitação importante, e a falta de comunicação na flash, entregue ao adjunto, pode ser compensada depois pessoalmente na sala de Imprensa. Porque, amigos, ter de esperar uma década ou mais para ter um canudo, somados os anos obrigatórios de experiência como pré-requisito e a longa espera por uma vaga, não lembra a ninguém. Se fosse um sistema assente na meritocracia ainda vá, mas todos sabemos que não será bem assim, não é?