O avançado de dimensão mais física volta a ter enorme impacto no futebol, precisamente quando este estava a ficar cada vez mais técnico e a privilegiar outro tipo de jogadores
Aqui há dias pensava não na minha vida mas no onze da minha vida, nos melhores que vi jogar, posição a posição, e confesso-vos cheguei com muita dificuldade a uma conclusão. Seria mais fácil eleger 13 ou mesmo 14, só para não dar azar, porém tenho muitas dúvidas de que qualquer adversário meu o permitisse.
Há escolhas muito difíceis, sobretudo quando acumulamos heróis, como se a nossa memória fosse uma caderneta de cromos, ou várias, preenchidas por completo, primeiro, a cada Europeu ou Mundial e, depois, praticamente ano após ano, culpa da overdose de informação que pintou a sépia as lembranças da minha juventude, como de um século distante se tratasse.
Se quem me conhece sabe que nomes como Maradona, Messi, Redondo, Zidane, Roberto Carlos e Maldini, entre outros, dificilmente faltariam, aviso que depois de ter abdicar de Ronaldinho Gaúcho – porquê, mas que raio, porquê? – emperrei no ponta de lança por não conseguir viver sem um deles, com medo de que o outro fique magoado e me obrigue a que o esqueça de vez. Duas carreiras massacradas por ausências longas, mas tão ricas e tão diferentes que mereciam a sua própria corte.
Presidente do Benfica foi ao canal do clube cumprir uma rotina e não dar uma entrevista, algo que nunca esteve em cima da mesa. Será que deixou realmente adeptos e sócios esclarecidos?
Ambos realeza, Marco van Basten desenhou elegância e inteligência onde Ronaldo Fenômeno espalhou força e drible, levando-nos à eterna dicotomia que nos apresentava Gabriel Alves com aquela expressão, como outras, tantas vezes repetida: é a força da técnica contra a técnica da força. No caso deles não era tanto assim.
Em crescendo de locomotiva, o brasileiro ainda levitava sobre os carris e desenhava ésses em Caminhos de Santiago cheio de retas e obstáculos, com um controlo absurdo da bola e truques de ilusionista. Já o franzino holandês era apenas leveza ao pisar por questões de aparência, que fazia questão de manter encontro após encontro, todavia resistia até ao limite possível a um futebol canibal, que lhe roubou os últimos anos da carreira e a nós todo o prazer que tínhamos em vê-lo em campo. Foi demasiado cedo, não estávamos preparados. Eu não estava.
Terceira vitória em outros tantos jogos com o novo técnico pontuada com exibição sólida em palco difícil, assente no contributo de Akturkoglu e Kokçu
Também o joelho de R9 implodiu debaixo de toda aquela musculatura, depois de uma pedalada tão característica, quando voltava de cinco meses de ausência, já vestido de azul e negro, e quase dois anos após a exibição mais apática alguma vez vista na final de um Mundial. O Olímpico abanava perante os estridentes gritos de dor, o silêncio sepulcral apoderara-se das bancadas. Contudo, dele não se tinha visto tudo e consagrar-se-ia, já um Rô diferente e de penteado duvidoso, no palco dos palcos, com a Taça dos Mundos nas mãos.
Ambos cirúrgicos a finalizar. Geniais também. À sua maneira. Não consigo escolher, tão diferentes e bons que eram. Algum entre vós deve estar a pensar: e Cristiano? Aí recorro àquele graffiti em Copenhaga, pintado numa parede no final dos anos 80, em que se perguntava: «E se Cristo voltar à Terra?» «Metemos o Elkjaer numa das alas!» Está bem para ti, Cris?
«Foi o golo da pessoa certa, que nos ajuda», reconheceu Rúben Amorim sobre o central belga que terá sentido pela primeira vez na carreira que duvidavam das suas capacidades
Mas adiante. Perdoem-me a comparação, mas há qualquer coisa de fenomenal nos arranques de Gyokeres. Mais força e menos técnica, mais unidimensional na capacidade de finalizar por culpa de um pé esquerdo menos jeitoso, porém uma locomotiva com a mesma capacidade de pairar sobre os carris e crescer em várias direções para a baliza. O impacto cá no burgo é tão grande que o modelo não só continua a convencer quem o contratou na procura de jogadores para a mesma posição como levou outros a enviar garimpeiros em busca de portentos físicos semelhantes e com idêntica capacidade finalizadora. Assim vieram Harder, Pavlidis e Samu, tal como antes Guardiola tinha visto em Haaland um 9 capaz de desequilibrar sempre que o modelo não o conseguisse, quando o espanhol até mais facilmente incorporaria um novo Van Basten se existisse. O molde também parece ter-se perdido.
Claro que Lewandowski e (Hurri)Kane não seriam o que são hoje se o holandês que agora é neerlandês não tivesse criado inúmeros momentos de filigrana ao longo da curta carreira e ainda tocado o céu, em êxtase, com aquela injeção de pura adrenalina, quando já chegara cansado ao ponto de encontro, capaz de trazer à vida os milhares de fantasmas que certamente na altura passeavam pela Marienplatz. O molde perdeu-se, mas ficou o rasto, mesmo que agora se olhe para outro tipo de avançado-centro.
Discurso do treinador do Benfica não é necessariamente cativante e, para já, só tem sido exposto a vitórias, mas o comportamento apela a que as bancadas entrem sempre em campo
A Espanha chegou a passar bem sem pontas de lança e agora confia que Morata encontre de vez a regularidade na finalização. Depois de tantas vezes ter usado pequenos bombardeiros após a elegância de Paolo Rossi ser referência – descansa em paz, Totò Schillaci, que sempre me obrigaste a olhar duas vezes para ti (que alma!) e para o teu nome para o escrevesse bem, com dois ‘l’ e um ‘c’! –, a Itália esperou que Scamacca entregasse golos até se lesionar com gravidade. Nos Países Baixos, desde Van Nistelrooij e Van Persie que a missão parece não assentar bem a ninguém, muito menos a De Jong, o Luuk. E a Alemanha ataca em mobilidade, com um falso 9 como Havertz, enquanto Fullkrug não se torna inevitável.
No entanto, um novo tipo de avançado está a ganhar espaço. Com defesas cada vez mais técnicos e menos físicos, criou-se de novo a deixa para que um novo estereótipo vingasse, em que a dimensão física volta a fazer a diferença, já que a habilidade também rareia. E a Escandinávia tornou-se o novo El Dorado, na Suécia, na Dinamarca de Preben Elkjaer Larsen, o rastilho da Danish Dynamite de 86, e na Noruega. Gyokeres (e Harder, de futuro), Wind e Poulsen, Sorloth e Haaland são exemplos.
Não há dúvidas de que o futebol é feito de ciclos. O passado cruza-se várias vezes com o presente e vice-versa. Basta percorrer a História. É uma serpente que engole a própria cauda. Sorte de quem antecipa as mudanças de paradigma e conta com os jogadores certos na altura ideal, porque ficará sempre mais perto de vencer mais vezes ou de encher os cofres com muitos milhões.