Um século depois do avô, o neto que vai aos Jogos Olímpicos de Paris
Manuel Carvalho Martins (em pé) vai ser juiz nos Jogos Olímpicos de Paris,100 anos depois de o seu avô ter ajudado Portugal a conquistar a primeira medalha olímpica... en Paris

Um século depois do avô, o neto que vai aos Jogos Olímpicos de Paris

JOGOS OLÍMPICOS27.07.202408:49

Manuel cresceu no meio dos cavalos a ouvir as histórias da primeira medalha olímpica portuguesa, conquistada pelo avô; agora vai ele às olimpíadas, mas quase parece… que não conta

«Avô, hoje não vais para os cavalinhos. Hoje ficas a brincar comigo.»

Aos três anos, a Maria já conhece demasiado bem a família. E o avô Manuel, em particular. Ela sabe que são os cavalos que lhe ‘roubam’ a presença do avô tantas vezes ao longo do ano.

E este seria mais um dia assim. Ainda que apenas durante umas horas, e para o avô falar dele próprio e do avô dele, que incutiu em toda a família a paixão pelos cavalos.

Mas desta vez, a Maria não se deixou enganar. Se o avô vai, ela vai com ele!

É por isso que a reportagem de A BOLA a encontra ali na casa dos bisavós. E se a ideia era fugir aos cavalos, aquele deve ser um dos piores sítios para o fazer em toda a cidade de Lisboa.

Porque há cavalos em toda a parte! As fotos são de cavalos. Os quadros - todos os quadros! – têm cavalos. Há estatuetas de cavalos. Há laços de cavalos. Há centenas – várias centenas! – de troféus de cavalos. Até as histórias de amor começam em cima de cavalos.

Uma relíquia: a fotografia da equipa que conquistou a primeira medalha olímpica para Portugal, assinada por todos

E o tema de conversa, claro, não podia deixar de ser: os cavalos e a ligação centenária entre eles e a família Martins.

A culpa é do avô Hélder. Hélder Sousa Martins, o avô que o avô Manuel não chegou a conhecer, mas cujas histórias lhe foram transmitidas pelo pai, tanto a ele como aos quatro irmãos.

«O meu pai sempre nos falou do cavalo e do avô com o objetivo de seguirmos o sentimento que ele tinha pelos cavalos. O avô viveu toda a vida para os cavalos e para os Jogos Olímpicos», introduz Manuel Carvalho Martins.

Ah, sim. O avô Hélder participou em três edições dos Jogos Olímpicos – Paris 1924, Amesterdão 1928 e Londres 1948.

Mas mais do que participar, o avô Hélder fez parte da equipa de cavaleiros que, em 1924, assinalam-se neste sábado 100 anos, conquistou a primeira medalha olímpica para Portugal, na prova de obstáculos por equipas.

E essa história, a da primeira medalha olímpica, foi-lhe contada – e passou ele a contá-la também! - infinitamente ao longo dos seus 65 anos.

«É difícil apontar quantas vezes a ouvi. Não quero exagerar e dizer centenas, mas dezenas de vezes, muitas dezenas mesmo. Porque cada vez que se falava dos Jogos Olímpicos, normalmente essa história vinha», acrescenta, sublinhando o caricato de um momento vivido pela equipa portuguesa que o avô integrava na capital francesa há um século.

«A história da primeira medalha que se conta sempre é a da bandeira. Quando foi a cerimónia do pódio não havia a bandeira portuguesa e eles recusaram-se a subir. Depois fez-se uma bandeira de Portugal improvisada com uns panos e lá se conseguiu que houvesse cerimónia», relata, sorridente.

«O cavalo é o grande amor que nos une»

É na sala de estar da casa dos pais que Manuel nos recebe. E é ali que percebemos que até as histórias de embalar na família metem cavalos. Ou talvez tenha sido apenas o sono a derrubar a pequena Maria que, entretanto, adormeceu.

Manuel, ainda criança, a montar um pónei em competição

Atenta a tudo, por outro lado, está Maria Ana. Mas isso é porque para a mãe de Manuel, bisavó da Maria, os cavalos lembram histórias de amor. Cenas de filmes românticos.

«Os meus pais conheceram-se a andar a cavalo em duas quintas ao pé de Sintra, de uma forma muito engraçada. Os dois puxavam para o lado dos cavalos e incutiram-nos este gosto permanente», conta-nos Manuel, sob o olhar aprovador da mãe.

«Ele via-me a montar a cavalo na minha quinta, pegava no cavalo e ia atrás de mim», detalha de sorriso terno no rosto a senhora de 91 anos, admitindo que não havia dia que os cavalos não entrassem pela casa dentro.

Uma história confirmada pelo filho.

«O cavalo é o grande amor que nos une a isto tudo. Nós montávamos todos os dias! Na manhã de Natal, íamos montar a cavalo. No dia 1 de janeiro de cada ano montávamos a cavalo, porque era uma tradição que vinha do avô. Portanto, os cavalos eram sempre tema: o que é que o cavalo evoluiu, ou não evoluiu; tu agora estiveste melhor em cima do cavalo, o que é que fizeste bem, como é que temos de tratar o cavalo, que tipo de alimentação devemos dar… Para nós era a segunda vida ou, a primeira vida, em alguns casos», confessa.

Ora, quando Manuel fala dos cavalos, deve ler-se também competição equestre. Porque além da preparação dos cavalos para as provas, toda a família entrou também em competição.

«Todos fomos cavaleiros, a começar pelo meu pai, seguindo para mim e os meus quatro irmãos. Com um ano e meio não se montava a cavalo, mas os cinco filhos do pai montaram pela primeira vez. Eu sou o mais velho de cinco irmãos, todos concursámos. Aliás, o pai chegou a concursar com os cinco filhos, o que também é bonito. E eu também cheguei, depois, a entrar nos mesmos concursos dos meus filhos e até nas mesmas provas», orgulha-se.

Um faz-tudo mundo equestre

Na casa dos pais de Manuel Carvalho Martins vemos uma foto dele com um ano e meio vestido de cavaleiro. E segundo nos conta, participou em competições oficiais até aos 52 anos.

Mas é difícil encontrar alguma coisa relacionada com a competição que ele não tenha sido.

«Na década de 80, fui chefe de pista – a pessoa que constrói os obstáculos para os cavalos saltarem. Fui organizador. Quando os meus filhos começaram a entrar em competição, parei de competir para os ajudar. E depois passei a ser juiz. Foi uma das formas de continuar ligado. Fiz o percurso todo, com os diversos níveis nacionais, e depois os vários níveis internacionais», explica.

Mas há mais.

«Pelo meio, fui dirigente, vice-presidente da Sociedade Hípica Portuguesa. E faço há 12 anos parte da Federação Equestre na Comissão Técnica de Saltos de Obstáculos, contribuindo para tudo o que tem a ver com regulamentos e formação de oficiais», acrescenta.

Mas de tudo o que fez, nada lhe dá mais prazer, do que aquilo que faz desde menino, ensinado pelo pai: preparar cavalos para a competição.

«Ser cavaleiro dava-me muito gosto mas aquilo que me dava mais era preparar o cavalo. Porque antes daqueles 60 segundos de prova, temos horas e horas e horas de trabalho. Naquele tempo de prova tem de ser tudo intuitivo e tem de haver uma comunicação muito natural entre cavaleiro e cavalo. É tudo feito por sensibilidade», descreve, com um notório entusiasmo.

Nos Jogos, em Paris, tal como o avô

Ao longo da conversa, ouvimos várias vezes Manuel dizer que a família continua a perseguir o sonho de voltar a marcar presença nos Jogos Olímpicos.

«É evidente que não perdemos ainda a esperança de irmos um dia aos Jogos Olímpicos».

«Há uma série de coisas que nos foram sempre transmitidas, como aquele sonho de podermos, um dia, voltar aos Jogos Olímpicos»…

Além da medalha de bronze de Paris 1924, o avô de Manuel tem mais três de participação: a de Paris, Amesterdão 1928 em Londres 1948

Mas estamos ali a conversar com Manuel, precisamente, porque ele vai marcar presença nos Jogos Olímpicos. Tal como o avô. Em Paris, tal como o avô. Exatamente 100 anos depois dele. Ainda que numa posição distinta.

«Sim, é verdade. Eu tenho agora essa hipótese, não como cavaleiro, mas como juiz», atira, após o recordarmos disso!

«Quando recebi o convite, fiquei muito sensibilizado e contente por poder ir. Ainda por cima, havendo esta particularidade de acontecer 100 anos depois de o meu avô ter lá estado e ter conquistado a primeira medalha para Portugal», comenta.

Ah, afinal é mesmo verdade!

«Vai ser uma participação muito especial e uma emoção muito grande poder lá estar, claro. Ainda por cima num sítio como Versalhes, onde estão a fazer uma coisa magnífica. Para mim tem um significado muito grande, e é fruto de um percurso e um esforço grande que tenho feito como juiz», acrescenta.

Apesar de ser tema recorrente há quatro gerações – porque já passou para os bisnetos do avô Hélder -, Manuel garante que um regresso aos Jogos Olímpicos nunca foi um peso que ele, os irmãos, filhos e netos tenham carregado.

«Aquilo que existia não era pressão. Mas há sempre aquele sonho dos Jogos Olímpicos, porque todos fomos atletas e qualquer atleta tem esse sonho. Mesmo que seja um atleta profissional e ganhe menos do que em qualquer outra competição, os Jogos Olímpicos são o topo para a carreira de qualquer atleta», sublinha.

Mas num puro-sangue de competição como Manuel, a conversa rapidamente volta à possibilidade de ter um cavaleiro da família como atleta olímpico.

«Temos a geração abaixo de nós já a entrar em competições. Um dos meus sobrinhos, o Gonçalo Maria, é profissional de cavalos. Os meus filhos também fizeram competição internacional, mas agora pararam por causa das vidas profissionais. Mas ainda há este gosto pelos cavalos e esperamos que continue nas gerações que vêm a seguir. Ainda há possibilidades de algum descendente poder vir a fazer uma participação como cavaleiro nos Jogos Olímpicos », deseja.

E a Maria, a pouco mais de um metro do avô, lá continua a dormir. Será que também ela sonha com os cavalinhos?