Tema tabu na sociedade, é-o ainda mais no desporto de alta competição. Esse estigma já afetou carreiras e sonhos de atletas, que agora não têm receio de abrirem o coração e chamarem à atenção deste problema persistente e, durante demasiado tempo, ignorado
«Esperei 30 anos para falar perante uma plateia aberta deste tema. Podemos falar de resiliência, mas a palavra importante para a maioria dos atletas é sobrevivência. Muitos de nós sobrevivemos. Ainda hoje me sinto como uma prisioneira de guerra.» As palavras são de Ana Oliveira, ex-desportistas e atual coordenadora do atletismo e do projeto Benfica Olímpico.
A antiga atleta do salto em comprimento e do triplo santo falava no II Seminário Nacional de Saúde Mental no Desporto de Alta Competição, que decorreu nesta última quarta-feira, no Centro de Artes do Estoril. Um evento organizado pela Associação dos Atletas Olímpicos de Portugal (AAOP) e que contou com testemunhos e revelações sobre a forma como a saúde mental afeta a vida dos atletas.
Ana Oliveira exemplifica isso com uma história pessoal e fortemente emotiva: «Tive a sorte, ou azar, de participar num Campeonato da Europa de atletismo em 1992. Eu também era professora e não existia o estatuto de atleta que me permitisse ir à prova. Então, para ir ao Europeu, tive de pôr baixa médica com um atestado.»
«No Europeu ganhei uma medalha e quando cheguei à escola tinha um processo disciplinar e fui irradiada da função pública. Fui para França, a minha saúde mental já não era famosa, e a dos meus amigos e família também não ficou muito equilibrada com esta situação», explica.
Alcançar os píncaros do desporto mundial é um exercício de superação física e, acima de tudo, mental, para o atleta do tripo salto. Assim como o é para Diogo Ribeiro
De facto, a ansiedade e a depressão podem surgir de vários lugares para um atleta de alta competição: aliando o estigma do tema, a falta de acesso a psicólogos e o desequilíbrio na conciliação da vida pessoal com a profissional, às questões como a longevidade de carreira, lesões e a transição para o mercado de trabalho no pós-carreira, fazem dos desportistas um grupo vulnerável no que toca à saúde mental.
É esta a conclusão de um inquérito, levado a cabo pelas investigadoras Maria João Heitor e Lara Pinheiro Guedes, feito a atletas, e apresentado neste seminário. A primeira, falando com A BOLA, explica que este «foi divulgado a todos os clubes e entidades desportivas», mas que apenas «cobriu 10% da população de atletas de alto rendimento». No entanto, não deixa de se poder retirar tendências do mesmo.
Como por exemplo: 93% dos respondentes não tem psiquiatra (no próprio clube ou através de outra entidade ou federação) e um terço não tem acesso a psicólogo. Para além disso, cerca de um em cada quatro dos que responderam têm dificuldades em conciliar o desporto com a vida pessoal.
Um desses exemplos é Marta Onofre, que ainda hoje procura esse equilíbrio. Atleta olímpica do salta com vara, recorda quase com as lágrimas as outras conquistas que poderia ter, caso sentisse o mínimo de apoio na questão mental.
«Entrei no curso de medicina aos 17, terminei-o aos 24 e tive o azar de me qualificar para os meus únicos Jogos Olímpicos [no Rio de Janeiro, em 2016] aos 25 e aí as coisas complicaram-se. Diziam-me sempre que ou brincava ao atletismo ou brincava aos médicos. A conciliação de carreiras não está pensada. Uma das maiores dificuldades que tive foi descansar e ter bom rendimento, o que não aconteceu nos últimos oito anos, também devido a uma lesão num tendão e que é uma razão para não estar nestes Jogos Olímpicos de Paris.»
Onofre está no fim da carreira, que planeia terminar no próximo ano. Sabe que vai «sentir um grande vazio emocional» quando acabar, «algo que devia ser preparado com todos os atletas». «Agora tenho 32 anos, estou no 2.º ano de internato, não sei se podia ter adiado o curso e ter sido muito melhor atleta… É uma mágoa muito grande que tenho porque a minha última boa performance foi aos 25 anos. Mas ainda vou tentar voltar a um palco mundial», continua, antes de sugerir soluções para estes problemas.
«Eu só fui sinalizada quando o meu desempenho foi comprometido por uma questão emocional. Atuamos muito secundariamente e não preventivamente. Por isso, devia também haver educação da saúde mental nas escolas, nos atletas, a partir dos escalões mais jovens», alerta.
O que pode o Governo fazer
Com este estudo, pretende-se passar da identificação de problemas à ação. «É um dever fazer isto, vamos levar estas conclusões à Assembleia da República e ao Governo, mas também vamos apresentá-las também à Ordem dos Médicos e à dos Psicólogos», diz Maria João Heitor a A BOLA.
Luís Alves Monteiro, presidente da AAOP acrescentou, em conversa com o nosso jornal: «O primeiro-ministro Luís Montenegro esteve no nosso 21.º aniversário e, não estruturando as ideias, disse que seria um compromisso deste Governo abordar este tema, sobretudo a questão do pós-carreira dos atletas. Depois, vamos falar com a Assembleia da República e os grupos parlamentares, para podermos trabalhar neste aspeto desde a base e promovermos os resultados que, como nação, todos queremos.»
«Quando me perguntam em que lugar fiquei nos Jogos Olímpicos, digo orgulhosamente que fiquei em 38.º»
Pressão constante para obter resultados, vindo do próprio atleta, do treinador e das pessoas à sua volta, é um ambiente propício à ansiedade. Depois, o resultado obtido é sempre alvo de enorme escrutínio, mesmo décadas após a prova, e acaba por se tornar na caracterização da própria pessoa por trás do atleta.
Quem o explica é Nuno Frazão, esgrimista que participou no Jogos Olímpicos de Atlanta, em 1996.
«Eu sou professor e quando me perguntam em que lugar fiquei nos Jogos Olímpicos, eu digo orgulhosamente que fiquei em 38.º. As crianças torcem logo o nariz, os adultos disfarçam um pouco a falta de entusiasmo», começa por explicar.
«Mas vamos a ver. Como professor, como pai e como treinador, acho que faço um bom trabalho, mas não me assumo como um dos 40 melhores do mundo nesses aspetos. Na única coisa em que me posicionei nos 40 melhores do mundo, as pessoas torcem o nariz ou não acham tão bem», conclui.