Com apenas 18 anos, vai estrear-se nos Jogos Europeus de Transplantados, porque, aos três anos e meio, uma meningite deixou-a com insuficiência renal, necessitando de um posterior transplante de rim; é a mais jovem da comitiva portuguesa, que conta com mais de 30 atletas
No abafado interior das piscinas municipais de Peniche, Beatriz Clemente está prestes a iniciar o treino semanal de natação. Apenas com um braço direito e com os membros inferiores amputados, pouca ajuda precisa para entrar na piscina, recorrendo apenas a uma cadeira de auxílio que coloca pessoas com mobilidade reduzida na água.
Seguiu-se um período em que nadou costas, bruços e crawl, sendo estas duas últimas as categorias (50 metros) em que vai competir nos Jogos Europeus de Transplatados, isto porque, devido a uma meningite que sofreu aos três anos e meio, que lhe deixou com insuficiência renal, precisou de um transplante de rim.
Com a ajuda da treinadora, trepou a berma da piscina, ao lado das escadas, apenas com o braço direito para subir ao lugar de partida. Como se nada fosse, mergulhou para continuar o treino. Da outra extremidade do pavilhão, no bar com vista para as piscinas, estavam os pais de Beatriz, a Helena e Luís, com a irmã mais nova, a Mariana já habituados a vê-la a nadar. «É uma máquina», disse a mãe.
Cláudio Mendes, treinador de ténis de mesa que fez um transplante de rim, lamenta ausência, por acidente, dos Jogos Europeus para Transplantados que arrancam este domingo, em Lisboa, mas torce por fora de olhos no regresso
Beatriz ficou surpreendida com a chamada da Associação Portuguesa de Insuficiência Renal (APIR) para os Europeus, porque só «há um ou dois meses» regressou a este desporto, cujo interesse despertou quando era criança. Mas além do «nervosismo» que admite sentir, conta que é dominada pelo «orgulho» de competir neste evento e considera «um privilégio» ser a atleta mais nova da comitiva portuguesa, composta por mais de 30 atletas.
Este ano, a prova que teve a primeira edição em 2000, em Atenas, vai-se realizar em Lisboa, entre 21 e 28 de julho, numa iniciativa da qual fazem parte o Grupo Desportivo de Transplantados de Portugal, juntamente com as federações europeias de Transplantes e Diálise e a de Transplantes de Pulmão e Coração.
No total, são esperados mais de 500 atletas repartidos por 25 países contando-se 15 desportos no programa - natação, atletismo, ténis, ténis de mesa, badminton, petanca, bowling, dardos, basquetebol 3x3, padel, ciclismo, voleibol, golfe, triatlo e biatlo virtual – que visa estimular a prática de exercício físico, sensibilizando a população para a importância de doação de órgãos.
André Weigert, diretor da Unidade de Transplantação Renal do Hospital de Santa Cruz, destaca a importância do exercício físico adequado a cada pessoa, numa altura em que Lisboa acolhe os Jogos Europeus para Transplantados
Sobre o problema que a afetou em criança, Beatriz mostrou-se evasiva, contando apenas «vagamente» o que se passou e por uma razão. «Normalmente as pessoas só me veem pela cadeira de rodas, nunca me conhecem assim tanto, veem só mais por fora. Posso parecer arrogante, mas sou simpática», descreve-se.
Pela mãe, pouco foi dito sobre o processo e as consequências que o mesmo causou no dia a dia de Beatriz, porém, não menos revelador. «Ela soube que tinha que se ajustar. Nunca se adaptou a próteses, nem queria aquilo. Chegou a uma altura em que nem valia a pena tentar que as usasse, porque dizia que só a atrapalhava. É o que é», disse Helena e Luís desabafou: «Já passou por muito.» E não foi preciso dizer mais nada.
Hoje, a nadadora é «quase autónoma», conta a mãe ao dizer que a casa onde vivem foi adaptada às necessidades da jovem de 18 anos. Porém, nem todos os espaços que frequenta estão equipados para ajudar Beatriz a movimentar-se. Prova disso foi uma escola que frequentou e cujo ginásio ficava no 1.º andar, sem meio de transportá-la. «Para a Beatriz não se passa nada. Nada a abala. Quer sempre conseguir tudo, participar em tudo, o que é fantástico e isso também nos deixa descansados», frisa Helena.
Arte acima da natação
Durante uma breve pausa no treino, a treinadora perguntou se Beatriz estava já saturada de estudar. Isto porque a sessão se deu um dia antes de um importante dia para nadadora. Terminado o curso de Artes Visuais, no secundário, a jovem preparou-se para o exame nacional de História da Cultura e das Artes, com vista a integrar o curso de História de Arte, na Faculdade de Letras em Lisboa.
O interesse pela pintura e pelo desenho é maior do que o da natação, mas «só um bocadinho», por isso, conjugar o desporto, a arte, os estudos e até a vida social só é possível se o tempo for «bem gerido». «Também não faço muita coisa», disse entre risos, porém é algo que não condiz com o que a mãe contou.
«Ela vai a todas. Já foi algumas vezes fazer surf adaptado, faz zumba, já fez ballet. Propõe-se a tudo, pode não dar muita continuidade, mas só o facto de ela querer ir e experimentar já conta muito», destaca, que destacou a atitude da filha.«Podia estar lá com as outras pessoas e sentir-se diferente, mas não tem problema nenhum com isso. Diz que ‘se ninguém quiser ver, mãe, que não olhem’»,termina.
E num ano em que Diogo Ribeiro se sagrou campeão mundial de 50 e 100 metros mariposa, meses antes de Camila Rebelo arrecadar ouro nos Europeus, em 200m costas, Beatriz diz: «eu tiro a inspiração por mim mesma. Claro que aprecio os nadadores e o que fazem, o Diogo Ribeiro principalmente, mas acho que a grande inspiração sou eu mesma.»