ENTREVISTA Rui Vitória: «Divórcio com o Egito vai ser complicado e litigioso»
Rui Vitória, em grande entrevista a A BOLA, explica a recente experiência no Egito e não esconde incómodo por ter saído.
— Que aconteceu no Egito para, com um percurso de 12 vitórias, 5 empates e uma derrota, não continuar à frente da seleção até ao Campeonato do Mundo dos Estados Unidos, sendo que esse era o objetivo?
— A ideia era estarmos juntos até 2026, foi com esse propósito que os dirigentes da Federação vieram a Portugal, para que eu pegasse na seleção do Egito, mas entretanto, com aquilo que foram as circunstâncias deste último ano, tudo foi interrompido a meio. Estava a ser um percurso muito interessante, com uma mudança de paradigma em relação àquilo que era habitualmente feito no Egito, os resultados também apareceram, mas depois o Campeonato Africano das Nações (CAN), que tem uma história muito particular, acabou por condicionar esse trajeto. Entenderam, porque existe uma pressão exterior enorme, que deviam mudar de timoneiro, e pronto, o resto é futebol. Mas tenho consciência de que fizemos um trabalho muito interessante, só perdendo um dos 18 jogos que fizemos, um particular com a Tunísia. Há uma falta de visão a longo prazo, tudo vive muito do imediato, daí o impacto do CAN.
— Estava a lembrar-me que empatou os três jogos na fase de grupos do CAN e Portugal também empatou os três jogos na fase de grupos em 2016 quando veio a ser campeão da Europa. O imediatismo é o que marca o futebol africano?
— Em África acontece muito isto e o CAN é uma competição extremamente difícil e muito interessante, onde se encontram equipas que têm imensa qualidade, com futebolistas a jogar a um nível muito elevado. O Congo, por exemplo, tem mais de 20 jogadores a atuar fora do país, em grandes campeonatos europeus. E depois há uma opinião pública muito exigente em toda a parte. E especialmente no Egito, porquê? Porque têm sete vitórias no CAN, embora não conquistem o troféu há 13 anos, o que é sinónimo de que os tempos modernos estão diferente. Depois, também é verdade que fizemos um percurso muito bom até ao CAN, que criou expectativas muito altas, e o que aconteceu a seguir soou a deceção. E não houve coragem para se acreditar naquilo que estávamos a fazer. Mas é o futebol que temos atualmente…
— O divórcio foi amigável ou litigioso?
— Estou convencido de que vai ser complicado e litigioso. Não estou a gostar da forma como se têm comportado até à data. Sempre tive uma relação fantástica com o povo egípcio, trataram-me de forma extraordinária, mas no que toca à Federação, sinto uma falta de responsabilidade, e uma falta de respeito também, e por isso serão os meus advogados a tratar do assunto de aqui em diante.
:— Nesta altura, e não era assim no passado, os selecionadores estão seguros de que recebem sempre o que lhes é devido, podem não receber logo, mas através da FIFA acabam sempre por receber…
— Isso é verdade, mas a questão é que eu sou um treinador que fundamentalmente, muito mais do que por valores financeiros, me pauto por outro tipo de valores…
— Vivia em casa própria ou estava num hotel?
— Ficávamos todos num hotel, eu e restante a equipa técnica, até porque as nossas famílias não estavam connosco em permanência, por nossa decisão. O hotel estava muito próximo da Federação onde íamos praticamente todos os dias.
— Como foi a experiência de viver no Egito? Teve oportunidade de conhecer o país?
— Tive, tive. O Egito é como aquela música antiga dos Táxi, ‘Excitante Cairo’, uma cidade que está sempre em efervescência, com um trânsito caótico, e uma agitação imensa. Não há horários para praticamente nada, as refeições não são à mesma hora que as nossas, e a primeira fase da adaptação não foi fácil. A sorte foi não estarmos com a família, o que nos permitiu lidar mais facilmente com estas mudanças todas. Do povo, também porque vínhamos com uma dinâmica de vitória, e a seleção é mais importante que os clubes, recebemos um tratamento muito bom. O problema quando se é selecionador é perder e ter de esperar dois ou três meses pelo próximo jogo, e isso não sucedeu connosco.
— Quantos jogadores tinha a jogar no Egito, entre os habituais titulares?
— Ao CAN levámos sete que jogam na Europa e tínhamos 19/20 a jogar no Egito. O que é um rácio muito superior ao da maior parte dos países que tiveram na competição. Só nós, a África do Sul, e a Namíbia, das 24 equipas, é que tínhamos uma grande percentagem de jogadores locais. Cabo Verde, por exemplo, que não era uma equipa daquelas tidas como favorita, tinha 22-23 jogadores, em 27, a jogar na Europa, e a Nigéria, do José Peseiro, também tinha praticamente todos.
— O José Peseiro disse-me recentemente que os principais problemas que teve na Nigéria tiveram a ver com pressões políticas para colocar em campo os jogadores que jogavam localmente, em detrimento dos que estavam no estrangeiro, algo que ia enfraquecer a equipa...
— O Egito é uma realidade diferente. Tem jogadores de qualidade e potencial, e existem três equipas tremendamente fortes o Al Ahly, o Zamalek, principalmente, e agora o Pyramids, onde os jogadores são estrelas. Não é fácil ali, como sucede noutras latitudes, um jogador sair daquele enquadramento, da sua família, do bom tempo, da comida, dos amigos, e abandonar um estatuto no clube onde é idolatrado e vir para qualquer equipa europeia.