Rui Vitória: «Fundamental é ter prazer no que estou a fazer,  se for em Portugal  não fecho a porta»
Rui Vitória entrevistado por José Manuel Delgado, na Aroeira. FOTO ANDRÉ FILIPE

ENTREVISTA Rui Vitória: «Fundamental é ter prazer no que estou a fazer, se for em Portugal não fecho a porta»

NACIONAL06.03.202410:30

Rui Vitória, em grande entrevista a A BOLA, aborda questões relacionadas com diferentes etapas da carreira e garante não descartar Portugal como hipótese para o futuro

Rui Vitória, 53 anos, que acabou agora uma experiência na seleção do Egito, foi campeão três vezes pelo Benfica, ganhou uma Taça de Portugal pelo Vitória de Guimarães, outra pelo Benfica, venceu duas Supertaças pelos encarnados, uma Taça da Liga também pelo clube da Luz e conquistou o campeonato da Arábia Saudita, ao serviço do Al Nassr. Com 725 jogos como treinador na carreira, Rui Vitória tem em mãos várias propostas, mas embora não exclua a possibilidade de voltar a orientar uma seleção, sente saudades do trabalho num clube, onde a cadência de jogos é muito superior. Numa conversa que decorreu no cenário privilegiado do campo de golfe Aroeira Pines Classic, a dois passos da casa de Rui Vitória, o técnico português explicou não só a sua saída do Egito, onde, pelo trabalho realizado, esteve entre os candidatos a melhor selecionador do Mundo da IFFHS do ano de 2023, como ainda falou da importância da independência financeira nas escolhas de um treinador.

— O Rui Vitória tem 725 jogos na carreira, 707 dos quais como treinador de clube. Daqui em diante vê-se mais como selecionador ou pensa poder regressar a treinador de clube?

— Creio que o meu futuro irá passar novamente por clubes, embora não feche a porta a uma seleção. Quando aceitei o desafio do Egito, uma grande nação, com um dos melhores jogadores do Mundo, tinha 51 anos e já tinha passado por contextos muito diferentes, desde o que é jogar para não descer de divisão e o que representa lutar pela Europa. Depois ganhei campeonatos, em Portugal e na Arábia Saudita, estive na Champions europeia e na Champions asiática, já tinha estado no calor e no frio, mas faltava-me uma seleção, para ficar com o menu completo daquilo por que um treinador deve passar.

— Estamos a fazer esta entrevista instalados no tee que é usado apenas pelos profissionais, no buraco um do campo de golfe Aroeira Pines Classic, a dois passos da sua casa, atrás de si está um fairway maravilhoso, estamos com um dia fantástico, tudo isto poderá fazê-lo equacionar continuar a carreira em Portugal, atendendo a toda esta envolvência e conforto?

— Essa possibilidade está sempre também no ar. O que acontece é que, nesta altura, estou numa fase da vida em que é fundamental sentir satisfação, sentir prazer naquilo que estou a fazer, e sentir que estou num projeto num clube que combina bem comigo. Não ando cá com a preocupação de treinar por treinar, e não faço depender as escolhas do país onde vou trabalhar. Se houver aqui em Portugal um projeto que se enquadre, muito bem. Se for fora, muito bem na mesma. Na primeira vez em que saí para o estrangeiro, fui com dúvidas, mas à Arábia Saudita seguiu-se a Rússia, depois o Egito, e a verdade é ganhei mundo e bagagem.

— Tive conversas recentes, quer com o Luís Castro, quer com o José Peseiro, a propósito de independência. Aliás, o Peseiro citou Scolari, porque a primeira vez que ele foi para treinador da seleção da Arábia Saudita, perguntou antes ao então selecionador nacional se não seria cedo demais. E Scolari respondeu-lhe que devia ir, porque ele, Luiz Felipe Scolari, só tinha começado a ser treinador a partir do momento em que tinha garantido a sua independência financeira, o que lhe permitia dizer não quando era caso disso. Sente o mesmo, que o facto de um treinador ter independência financeira lhe reforça o poder e o coloca mais à vontade perante os dirigentes?

— Não sei se dará mais poder. Mais à vontade, sinto que dá, isso dá. Podermos resolver aquilo que é o nosso próprio futuro, decidirmos aquilo que queremos fazer consoante o nosso estado de espírito, não estar dependente, é um alívio. Mais a mais quando, nesta altura, aquilo que mais me guia é a paixão de querer treinar.

— Esteve, até Guimarães, a investir, na sua carreira. A partir do Benfica começou a ganhar dinheiro, e ainda não parou. Ou seja, na Arábia Saudita terá tido, seguramente, um bom contrato, no Spartak de Moscovo igualmente, e no Egito não me parece que também tenha sido mal pago. Portanto, já está na fase em que pode treinar onde quiser, sem ter de ir para o primeiro que lhe bater à porta...

— Sim, é um bocado isso. O que é, de certa forma, perigoso. Sou o primeiro a dizer que um treinador tem de estar sempre em permanente atualização. Nada disso é compaginável com o comodismo. Porque pode haver aquela tendência de começarmos a relaxar um bocadinho. E o treino de alta competição não é comparável com aquilo que era…

— O treino mudou muito nos últimos 20 anos?

— Mudou. O treino, os jogadores, as equipas, e o meio envolvente, particularmente nos últimos anos.

— Está agora a trabalhar com millennials. São diferentes do que era a sua geração, por exemplo? Para já não falar da minha, em que os jogadores não tinham empresário, não tinham assessores de comunicação, e faziam eles o contrato diretamente com os dirigentes. Isto só começa a alterar-se substancialmente a partir do início dos anos 90…

— Sim, e agora são jogadores altamente bem pagos. O que eu digo sempre é que o jogador tem que sentir necessidade, tem que sentir aquela fome que não tem a ver com o dinheiro, mas com a necessidade de conquistar qualquer coisa. E isso para mim é um desafio, o de descobrir na cabeça dos jogadores qual é a necessidade que tem. O ser humano tem sempre necessidades, que podem nem ser financeiras. Há a necessidade de afirmação, a necessidade de títulos, de ser reconhecido, de ser valorizado. Hoje lidamos com autênticas empresas, porque quando chega um jogador, já traz um fisioterapeuta, ou um treinador pessoal, um coach, um departamento de comunicação, o que gera muitos interesses paralelos. E nós temos de saber lidar com essa realidade. E mais: hoje, um jogador dá muito mais valor a uma opinião que seja partilhada numa rede social do que a aquilo que o treinador, ou alguém que o conhece e que o quer corrigir, diz. Porque chega a casa e tem 200 opiniões a dizer que jogou muito bem. E às vezes queremos corrigi-los e eles nem estão nem aí, têm sempre um colchão que afaga o ego e lhes apara as quedas mais fortes.