«Quando fui ao balneário e vi o Bas Dost a jorrar sangue, passei-me dos carretos»
Antigo jogador Manuel fernandes no treino para o encontro a favor da UNICEF, que vai opor os Embaixadores da Liga Portugal a uma equipa de diversas figuras públicas. (SÉRGIO MIGUEL SANTOS/ASF)

Manuel Fernandes «Quando fui ao balneário e vi o Bas Dost a jorrar sangue, passei-me dos carretos»

NACIONAL28.06.202409:08

Manuel Fernandes faleceu aos 73 anos. Em 2019, concedeu uma entrevista à A BOLA TV que agora recuperamos. O antigo capitão fala de tudo, desde o primeiro jogo que viu do Sporting aos treinos no Benfica.

A proposta que aqui deixamos é conhecer a vida de Manuel Fernandes contada, desde os tempos em que acompanhava o pai que trabalhava nas fragatas até à invasão de Alcochete, que testemunhou, pelo próprio protagonista. Numa extraordinária entrevista de vida concedida a A BOLA TV em setembro de 2019, Manuel Fernandes desfiou memórias e abriu o coração. E é ao lado de Fernando Peyroteo e Vítor Damas, depois de ter reencontrado Salif Keita, Manoel, Rui Jordão e Chico Faria, companheiros do ataque verde e branco — que o Manel de Sarilhos vai certamente gostar de recordar esta sua história, vai da trapeira à Bola de Prata, das alegrias às amarguras, das vitórias às injustiças, afinal retalhos da vida de quem escolheu o futebol como profissão e o Sporting como paixão…

— O Manuel Fernandes fez uma carreira de treinador de sucesso com cinco subidas de divisão.

— É verdade, e só não fui mais longe por ser como sou. Quando subi o Campomaiorense, tive um convite de Valentim Loureiro para ir para o Boavista e recusei. Disse-lhe, desculpe, Major, mas eu não viro as costas a esta gente. Tratam-me como um Deus, não sou capaz. Nunca soube sair nos momentos altos, quando me era mais favorável. Mas não estou nada arrependido. Tenho amigos em Campo Maior e a família Nabeiro foi do melhor que conheci no futebol. Numa altura complicada, de fragilidade em termos familiares, fui para os Açores e subimos logo à Divisão de Honra. Disseram-me, na época seguinte, que o objetivo era apenas a manutenção, em março estava em quinto lugar, e lancei um repto à Direção. Querem subir já este ano? Vão buscar três jogadores e subimos. E assim foi.

— Foi então que veio treinar o Sporting.

— Sim, mas a minha primeira reação foi dizer que não queria sair dos Açores. O Dr. Luís Duque insistiu, numa altura em que tinha falhado a contratação de José Mourinho, e fui apagar um fogo a Alvalade. Mas foram os diretores do Santa Clara que me disseram: o míster gosta tanto do Sporting, vá, não recuse. Ainda ganhei a Supertaça, demos 3-0 ao Benfica para o campeonato. Tive subidas no Penafiel, com o António Oliveira como presidente, e no União de Leiria, que apanhei em último lugar e levei à 1.ª Divisão. O segredo para subir na 2.ª Divisão é escolher os jogadores certos. Para além da classe do Vítor Oliveira, que era o rei das subidas como treinador, ele sabia escolher muito bem os jogadores. Desde que se tenha um guarda-redes, um central, um médio e um ponta de lança de qualidade, está meio caminho andado.

— Como foi a sua relação com Bruno de Carvalho?

— Quando Bruno de Carvalho disse que eu era o pior funcionário do Sporting, se calhar porque tinha um salário elevado, embora não desse para ficar rico, foi infeliz porque estava a referir-se a alguém com passado no clube, e que já dera provas de grande sportinguismo. Depois disse ao meu filho que na altura estava na Academia, que queria falar comigo, e eu respondi-lhe que não tinha problemas com isso, desde que não fosse em público. Foi a minha casa, cada um disse o que tinha a dizer e as coisas resolveram-se. Mas é evidente que fiquei magoado para sempre.

— O que aconteceu nos últimos meses da presidência de Bruno de Carvalho?

— Antes, ele teve o azar de não ter ganho o campeonato no primeiro ano do Jorge Jesus, depois de uma época como o Sporting não fazia há muito tempo. Jesus pôs a equipa a jogar e os adeptos a delirar, como eu não via há muitos anos. Não vale a pena agora estar a aprofundar razões, mas o Sporting merecia ter ganho esse campeonato. Mas a partir de determinada altura, Bruno de Carvalho mudou. O que menos gostei foi o que fez depois do jogo com o Atlético de Madrid, perdeu o equilíbrio emocional e a razão.

— Foi aí que começou a cair. Mas Bruno de Carvalho pensou que podia ganhar uma guerra contra a cabina?

—Nem ele, nem nenhum presidente consegue ganhar uma guerra dessas. Ninguém. Os presidentes têm de se capacitar que os adeptos dos clubes adoram os jogadores. Eu, quando era miúdo, sabia lá quem era o presidente do Sporting! Sabia quem eram o Figueiredo, o Géo, o Lourenço, o Zé Carlos, o Hilário. Queria lá saber quem era o presidente. Bruno de Carvalho perdeu esse sentido da realidade. O que ele disse do Gelson, ou dos centrais, que tinham sido os esteios da equipa, quanto muito, podia pensar, dizer, nunca. A partir daí complicou-se tudo.

— Esteve Alcochete no dia da invasão, sentiu que andava alguma coisa no ar?

— Soube do que aconteceu no Aeroporto da Madeira, depois do jogo com o Marítimo, e a seguir no túnel de Alvalade, mas nunca me passou pela cabeça que as coisas tomassem aquelas proporções.

— Vistas pelos seus olhos, como é que as coisas aconteceram?

— Estava no meu gabinete com alguns colegas e ouvi barulho. Vim à porta e já passaram por mim alguns dos invasores, uns com a cara tapada, outros não, e um deles disse-me: Manel, desvia-te que isto não é contigo. Ainda perguntei o que é que iam fazer, mas já não obtive resposta. Quando fui ao balneário e vi o Bas Dost a jorrar sangue, passei-me dos carretos. Aliás, eles tinham alvos definidos. Noutras alturas, no passado, os adeptos já tinham vindo pedir satisfações à Academia, dizendo na cara aos jogadores que tinham de jogar de forma diferente, mas nunca desta forma. Que sirva de lição ao futebol português, onde já houve coisas gravíssimas, como a morte de dois adeptos do Sporting, e nada aconteceu.

— Vale a pena apostar na formação?

— Só se pode apostar na formação quando há jogadores para serem lançados. Mas ir buscar fora, se há do mesmo nível em casa, não vale a pena.

— Gosta de ser comentador?

— Habituei-me a gostar.

— E de vez em quando sai do estúdio a pensar que se esticou?

- Às vezes. Mas não é nada fácil ser comentador em representação do Sporting. Enquanto outros ganham, o Sporting não ganha tanto. E quando se ganha mais fácil.

— Mas sente-se confortável na televisão?

— Sim, tão confortável como aqui consigo.