«Fiquei a tremer com aquele dinheiro, mas na altura tínhamos valores»
Manuel Fernandes recebe de Vitor Santos, chefe de redação do jornal A Bola, a Bola de Prata, troféu para o melhor marcador da epoca 1985/86

Manuel Fernandes «Fiquei a tremer com aquele dinheiro, mas na altura tínhamos valores»

NACIONAL28.06.202409:01

Manuel Fernandes faleceu aos 73 anos. Em 2019, concedeu uma entrevista à A BOLA TV que agora recuperamos. O antigo capitão fala de tudo, desde o primeiro jogo que viu do Sporting aos treinos no Benfica

A proposta que aqui deixamos é conhecer a vida de Manuel Fernandes contada, desde os tempos em que acompanhava o pai que trabalhava nas fragatas até à invasão de Alcochete, que testemunhou, pelo próprio protagonista. Numa extraordinária entrevista de vida concedida a A BOLA TV em setembro de 2019, Manuel Fernandes desfiou memórias e abriu o coração. E é ao lado de Fernando Peyroteo e Vítor Damas, depois de ter reencontrado Salif Keita, Manoel, Rui Jordão e Chico Faria, companheiros do ataque verde e branco — que o Manel de Sarilhos vai certamente gostar de recordar esta sua história, vai da trapeira à Bola de Prata, das alegrias às amarguras, das vitórias às injustiças, afinal retalhos da vida de quem escolheu o futebol como profissão e o Sporting como paixão…

— Qual a sua relação com João Rocha, um dos melhores presidentes da história do Sporting?

— Entre nós havia bastante carinho e o presidente sabia como levar-me. A única vez em que me exaltei com ele foi quando soube que o Sporting tinha contratado um jogador, que acabou por fazer meia dúzia de jogos, a ganhar mais do que eu e disse-lhe: presidente, vou-me embora, o que me estão a fazer é uma vergonha. É evidente que me deu logo a volta e no dia seguinte fomos almoçar juntos. Saí desse almoço com mais algum dinheiro, e mais dois anos de contrato. Reconheço que nunca tive grande jeito para negociar…

— Teve convites para sair, enquanto esteve no Sporting?

— Em 1979/1980, fomos campeões, e fiz uma das melhores épocas da minha carreira, numa altura em que o Artur e o Eurico tinham passado do Benfica para o Sporting, e o Laranjeira e o Botelho tinham ido do Sporting para o Benfica. Foi então que Romão Martins, vice-presidente do Benfica para o futebol, telefonou-me e disse que queria encontrar-se comigo. Encontrámo-nos em Coina, meteu-me no carro, levou-me para o meio do pinhal, e disse-me: você tem aqui um cheque de 30 mil contos [150 mil euros]. Eram tantos zeros, que eu nem sabia ler aquilo. Fiquei a tremer, nunca tinha visto números daqueles, com 30 mil contos comprava Sarilhos! Perante aquilo, disse-lhe que ia falar com a família, e que no dia seguinte daria uma resposta. Mas nunca mais lhe disse nada.

— Porquê?

— Na altura tínhamos valores, e eu não me estava a ver a jogar no Benfica, uma instituição pela qual tenho muito respeito. Mas para mim, sempre houve coisas mais importantes que o dinheiro. Aliás, um certo dia, contei isto ao Rui Patrício, e disse-lhe que tinha deixado de ganhar uma fortuna no Benfica, mas toda a gente me ligava ao Sporting, e nos anos em que trabalhei para o clube, como treinador, treinador-adjunto, dirigente, scouter, se calhar recuperei o que deixei de ganhar como jogador.

— Qual foi a resposta do Rui Patrício?

— Ele disse: mister, eu ganho bem no Sporting, não preciso de sair, e não quero sair do clube. O Rui Patrício queria ficar.

— Mas ao Manuel Fernandes, quando chegou à altura, aconteceu o mesmo que a todos os outros. Puseram-lhe as malas à porta e teve de ir para Setúbal…

— A Direção não queria que eu saísse, mas acabou por acompanhar o treinador, Keith Burkinshaw, que não contava comigo. E, para mim, não foi o Sporting que me mandou embora, foram dois dirigentes.

— Nesses anos falhou as fases finais do Europeu de 1984 e do Mundial de 1986. Porquê?

— Em 1984 tinha feito uma época fraca, e percebo que não tenha sido convocado. Em 1986, não. Num jantar organizado pelo Marinho, que foi meu colega no Sporting e era adjunto da seleção, o José Torres [selecionador] disse-me que provavelmente iria convocar-me. No início dessa época, lembro-me, depois de ter marcado cinco golos ao Penafiel, de ter dado uma entrevista à televisão onde disse que estavam a aparecer uns miúdos mais novos e que, se calhar, seriam eles os escolhidos para futuras convocatórias. Mas não sabia que ia fazer a época que fiz. Ganhei a Bola de Prata com 30 golos! A meio da temporada, com os golos que estava a marcar, esperava ser chamado. Foi quando se deu esse jantar com o José Torres em casa do Marinho, apresentei os meus argumentos e o José Torres disse que ia ver… Mas a verdade é que nunca me chamou.

— Qual foi a sua melhor fase na Seleção?

— Na verdade, o meu melhor momento na seleção foi no apuramento para o Mundial de 78 na Argentina. Falhámos a qualificação por muito pouco e em seis jogos marquei quatro golos. No jogo decisivo, na Polónia (1-1) marquei o nosso golo, a passe genial do Chalana, e ainda fizemos um segundo golo, limpo, que o árbitro anulou. Naqueles anos, Portugal não tinha peso nenhum lá fora.

— Quer recordar o lance com o Manuel Bento, em 1981/1982, que acabou com a expulsão do guarda-redes do Benfica, e que tanta polémica causou?

— Aliás, deixe que diga que ficou tudo bem entre nós. Até fomos a um programa de televisão para fazer as pazes e já não era preciso. O que se passou foi o seguinte: anos antes, o Bento tinha levado uma série de pontos na cabeça, , num lance com o Reinaldo, em Famalicão. Naquela noite, o Lito meteu-me a bola, isolei-me, o Bento saiu da baliza, eu arrastei o pé, e se lhe toquei foi um coisa de nada. Ele levantou-se com a bola na mão, veio direito a mim e eu ainda lhe disse: ó Bento, tem calma, o que é que vais fazer? Ele virou-se para mim e disse-me: és sempre a mesma merda, e deu-me com força com o braço. Foi expulso, foi penálti a nosso favor e vencemos bem esse dérbi em Alvalade.

— É inevitável, quando se faz a história da sua passagem pelo Sporting, falar dos 7-1 ao Benfica, na tarde em que fez um póquer…

— Foi um jogo inesquecível e, quando vencemos o Benfica, ficámos perto do primeiro lugar. Onde começámos a cair foi em Guimarães. Eu fiz um a zero, no início da segunda parte mas  acabámos por perder 1-3.

— Ficou com a bola dos 7-1?

— O árbitro apitou para o fim da partida e o Gabriel (defesa direito do Sporting) agarrou na bola. Eu disse-lhe logo: Gaby, dá cá a bola que é minha, ao que ele me perguntou se era por causa dos quatro golos. Respondi-lhe que não, que era o dia dos anos da minha filha e queria dar-lha de presente. Quem tem essa bola é a minha filha.