Porque é que o Benfica perde tanto com o FC Porto na nova Luz?
A perspetiva de quem jogou, de quem treinou e de quem vai para a bancada; superioridade dos dragões em casa das águias: 10 vitórias contra apenas seis do rival
A expressão foi atribuída a Gabriel García Márquez sobre o receio de falar em público e mais tarde popularizada por Jorge Valdano para se referir ao poder que o Estádio Santiago Bernabéu, casa do Real Madrid, exerce nos adversários. Mas El miedo escénico y outras hierbas, um dos grandes livros de crónicas do campeão do Mundo pela Argentina em 1986, também se referiu ao Maracanazo, quando o Brasil perdeu em casa o Mundial-1950 para o Uruguai, o dia em que o futebol percebeu como a magnitude do evento pode ser proporcional à consequência – neste caso, serviu para aumentar, à época, como escreveu Nélson Rodrigues, o «complexo vira lata» de uma nação inteira.
O «medo cénico» foi uma expressão recentemente recuperada pelos benfiquistas para caracterizarem o balanço dos jogos frente ao FC Porto desde que a nova Luz foi inaugurada. Decorridos 20 anos da construção do palco que recebeu a final do Euro-2004, o balanço é bastante favorável para o rival: em 23 jogos (para todas as provas), o FC Porto venceu 10 vezes e o Benfica apenas seis (sete empates nos restantes encontros) e registou-se um saldo de 24-28 em golos.
Benfica-FC Porto em 20 anos do novo Estádio da Luz
Época | Competição | Resultado |
2004/2005 | Liga | D (0-1) |
2005/2006 | Liga | V (1-0) |
2006/2007 | Liga | E (1-1) |
2007/2008 | Liga | D (0-1) |
2008/2009 | Liga | E (1-1) |
2009/2010 | Liga | V (1-0) |
2010/2011 | Liga | D (1-2) |
2010/2011 | Taça de Portugal | D (1-3) |
2011/2012 | Liga | D (2-3) |
2011/2012 | Taça de Portugal | V (3-2) |
Estes números ganham ainda outra expressão quando comparando com os últimos 20 anos no Dragão: cinco vitórias do Benfica, sete empates, 12 triunfos portistas e 23-37 em golos. Ou seja, as águias comportam-se quase da mesma maneira na Luz como na condição de visitante.
«Bloqueio mental»
«Há um bloqueio mental», diz Bruno Aguiar, antigo jogador dos encarnados, campeão em 2005, o primeiro título após a criação da nova Luz. ««Sinceramente, é algo que não consigo explicar, mas é percetível e parece que começa a ficar enraizado. Isso sente-se nos próprios adeptos, que começam a assobiar se algo correr mal. E isso reflete-se dentro de campo, os jogadores ficam nervosos e instáveis», afirma o antigo médio, que mais tarde fez carreira na Escócia e no Chipre.
Vasco Mendonça dá menos importância aos que se sentam nas bancadas. Na perspetiva do adepto, naturalmente mais acalorada, o papel daqueles que estão de fora é reduzido e torna-se até «ingrato», porque assistem a «mais do mesmo». «É como se percebessem: outra vez arroz?»
O «mais do mesmo» que o colunista de A BOLA aponta não se refere só aos resultados, mas ao modo como estes são construídos. Acusa a «teatralidade dos jogadores do FC Porto», que na sua opinião «condicionam os árbitros», porque «conseguem agir dentro da lei, mas manipulando». «Mesmo quando praticam um futebol sofrível, não perdem esses traços identitários, são exímios nisso.»
Benfica-FC Porto em 20 anos do novo Estádio da Luz
2012/2013 | Liga | E (2-2) |
2013/2014 | Liga | V (2-0) |
2013/2014 | Taça de Portugal | V (3-1) |
2014/2015 | Liga | E (0-0) |
2015/2016 | Liga | D (1-2) |
2016/2017 | Liga | E (1-1) |
2017/2018 | Liga | D (0-1) |
2018/2019 | Liga | V (1-0) |
2019/2020 | Liga | D (0-2) |
2020/2021 | Liga | E (1-1) |
2021/2022 | Liga | D (0-1) |
2022/2023 | Liga | D (1-2) |
Isto decorre de um princípio orientador que vem de cima e que, no fundo, admite Mendonça, explica a superioridade dos azuis e brancos nos confrontos diretos na Luz nas duas últimas décadas: «Enquanto para o Benfica este é mais um jogo, para o FC Porto é um momento de definição da sua cultura, usando os jogos com o Benfica numa lógica adversativa muito negativa e colhendo frutos. O FC Porto prepara muito bem estes jogos, assentando neles a sua cultura regionalista e anti centralista. O Benfica não tem essa identidade por ser um clube nacional e com dimensão internacional.»
«Mística é palavra difícil de explicar»
Álvaro Magalhães encontra nos pontos fortes do rival as razões para o desequilíbrio. «Há uma crença que começa a existir na cabeça das pessoas. No caso do FC Porto, uma enorme confiança, claro. O FC Porto como equipa mostra sempre uma grande vontade de ganhar. Há uma diferença para o meu tempo», assinala o antigo lateral-esquerdo dos encarnados, nove anos de águia ao peito entre 1981 e 1990.
«Recordo-me de épocas em que o FC Porto era superior a nós, como por exemplo em 1984/1985, mas mesmo assim íamos para cima deles e ganhávamos. Nós tínhamos uma mística, aquela raça, aquele desejo de vencer», descreve.
«O FC Porto tem isso mas também muita organização, é preciso dizê-lo. Mesmo quando não joga bem nunca se perde taticamente, isso tem-se visto com Sérgio Conceição, os jogadores sabem muito bem o que fazer em todas as posições em todos os momentos do jogo», afirma Álvaro Magalhães.
A cultura de um clube é um manto que pode ser descrito de várias formas, menos subjetivo é o seu raio de cobertura. «O FC Porto nunca perde a sua identidade nestes jogos, prepara-se muito bem», insiste o antigo internacional português, identificando aqui e ali uma diferença na interpretação de um termo sagrado no futebol.
«A mística é uma palavra difícil de explicar. No meu tempo, com tantos portugueses, era mais fácil tê-la no Benfica», aponta. «Mas o FC Porto possui muitos estrangeiros», contrapomos. «É verdade, mas já vêm preparados. Além disso, têm um treinador português que conhece a identidade e muitos dos estrangeiros são argentinos ou uruguaios, que se enquadram muito bem neste pensamento, são espetaculares para esse objetivo.»
«Jogo de uma vida»
«Não me importo de perder com o FC Porto em casa desde que seja campeão», afirma Bruno Aguiar, embora não goste deste balanço que desfavorece os lisboetas. E dá o exemplo do jogo da época transata: «Não se compreende. Tínhamos 10 pontos de vantagem, depois lesiona-se o Bah e a equipa tremeu a partir daí, perdendo o jogo e a vantagem de pontos.»
A reversão do passado recente passa por um reforço da mentalidade: «Se para os jogadores do FC Porto este é o jogo da vida deles, para os do Benfica também tem de ser. Na época passada não devíamos apenas ter ganhado, devíamos ter ganhado bem e isso não aconteceu.»
«Sexta-feira espero que isso mude porque o Benfica tem melhor equipa e deve mostrá-lo a todos. O problema está se cinco ou seis jogadores começarem e ter medo da bola», é o sentimento que o ex-futebolista formado nas águias, hoje com 42 anos, partilha.
«Vencer este jogo será muito importante antes da viagem para Milão [frente ao Inter, para a Liga dos Campeões]. É fundamental para a afirmação da equipa, também, junto dos próprios adeptos, porque ainda não transmite, para já, aquela sensação de controlo que teve na época passada», é o reparo de Vasco Mendonça, aceitando que a repetição de um padrão, neste caso os resultados negativos diante dos azuis e brancos, «deixa marca e forma cultura».
«Há que ultrapassar e encarar este jogo da mesma maneira como o FC Porto encara. Mas se há momento em que o Benfica pode dar a volta, mas mantendo a elevação, é este, porque vejo o clube bem preparado para isso», acentua o adepto.
Álvaro Magalhães subscreve, mas discorda daqueles que apontam pouca qualidade aos azuis e brancos: «Para vencer um jogo desta envergadura é preciso agressividade positiva ao máximo e muita concentração em todos os momentos do jogo. Mas este FC Porto tem grandes jogadores, é uma grande equipa. Está a criar-se a mensagem contrária mas é só para enganar o passarinho.»
'Salão de festas'
O primeiro clássico entre as duas equipas no novo Estádio da Luz realizou-se a 15 de fevereiro de 2004, na temporada em que o FC Porto de José Mourinho venceu a Liga dos Campeões. Costinha marcou primeiro aos 29’ e Simão Sabrosa empatou na segunda parte, aos 49’. O marcador não mais se alterou e os dragões conquistariam também o campeonato (a Taça de Portugal ficou para o Benfica, na final diante do rival).
Talvez nem o mais otimista dos adeptos dos azuis e brancos esperasse que a partir daí a equipa viesse a construir uma superioridade considerável em casa do adversário, conciliando bons resultados com momentos que entraram para a história.
A expressão ‘salão de festas’ nasceu na sequência do título conquistado em 2011 (Otamendi estava no outro lado), no tempo de André Villas-Boas, quando o FC Porto venceu por 2-1 e cuja festa foi marcada pelo apagar de luz e pela rega do relvado, na tentativa dos responsáveis benfiquistas em minimizar a exuberância portista. Onze anos mais tarde, os dragões voltariam a repetir o feito, com o golo solitário de Zaidu. Não houve rega nem problemas de energia, mas a carga negativa aumentou para as águias, que em 2018 também tinham visto Herrera tirar-lhes o penta inédito. Em 20 anos foram vários os protagonistas, de treinadores a jogadores, de várias nacionalidades, mas o padrão manteve-se. Como será agora?