«Há clubes em Portugal que são cúmplices dessas organizações criminosas»
Joaquim Evangelista é presidente do Sindicato dos Jogadores (Sérgio Miguel Santos/ASF)

«Há clubes em Portugal que são cúmplices dessas organizações criminosas»

NACIONAL18.10.202309:00

Com a frontalidade que o caracteriza, o presidente do Sindicato dos Jogadores, que apresenta nesta quarta-feira, na sede da PJ, o ‘Dossier Tráfico Humano’, garante que manterá o tema na agenda mediática e assume: «Por mais que digam que sou inconveniente, nunca irei hipotecar os meus valores.»

O presidente do Sindicato dos Jogadores, Joaquim Evangelista, concedeu uma entrevista a A BOLA, no Dia Europeu contra o Tráfico de Seres Humanos. O dirigente foi frontal como é seu hábito e não tem dúvidas da importância do tema.

O sindicato dos Jogadores bate-se há vários anos contra o tráfico humano no futebol português. Como está a situação?

— Tem valido a pena numa dupla perspetiva, institucional, na medida em que o Sindicato se associa à defesa dos Direitos Humanos, mas também pessoal, porque estou a exercer a minha cidadania, ao não ser indiferente, nem cúmplice pelo silêncio. Estes jovens podiam ser meus filhos, alimentam o sonho de serem futebolistas, e de repente estão perante um pesadelo que coloca em causa o seu futuro. Portanto, não só vale a pena, como naquilo que depender de mim e do Sindicato, iremos continuar a colocar o tema na agenda do desporto, doa a quem doer.

— Numa matéria desta natureza, o SEF não devia intervir mais?

— Sim, porque na verdade este tema não é apenas desportivo. Nem é um tema do Sindicato. Mas não podemos ficar indiferentes aos jogadores que nem sequer são nossos sócios, alguns deles nem federados estão, mas batem-nos à porta, sem terem de comer nem onde dormir. E nós fomos a única instituição que sempre que isso aconteceu, não só deu condições de estadia aos visados, como garantiu o regresso em segurança aos seus países. Já pagámos viagens a dezenas de jogadores!

«Combatemos uma máfia que  não pode ter espaço no futebol»

18 outubro 2023, 09:25

«Combatemos uma máfia que não pode ter espaço no futebol»

Com a frontalidade que o caracteriza, o presidente do Sindicato dos Jogadores, que apresenta nesta quarta-feira, na sede da PJ, o ‘Dossier Tráfico Humano’, garante que manterá o tema na agenda mediática e assume: «Por mais que digam que sou inconveniente, nunca irei hipotecar os meus valores.»

— E não havia outras entidades que pudessem arcar com a responsabilidade e desempenhar esse papel? 

— Pois, mas põem-se a discutir se é tráfico, se é auxílio à imigração ilegal, ou se é burla, vão, dessa forma excluindo, e não fica ninguém para dar resposta a este problema. E foi precisamente por isso que, a determinada altura, fui obrigado a enviar uma carta ao secretário de Estado e à FPF, onde dizia basicamente que não estávamos perante um problema do Sindicato, mas sim da comunidade desportiva e do País, que se arriscava a ser acusado de não prestar auxílio a quem mais precisava.

— Porque é que Portugal se tornou na principal porta de entrada na Europa deste tipo de tráfico? 

— Portugal é uma plataforma giratória, por razões históricas e pela ligação a África e à América do Sul. Depois, no futebol, somos uma referência, não só na formação como no facto de nos termos transformado num trampolim para a Europa. Cristiano Ronaldo é o ídolo de infância da maioria destes jogadores… E o que é facto é que houve um conjunto de indivíduos que se aperceberam desta oportunidade e começaram a explorá-la sem escrúpulos.

— Qual é o modus operandi dessas máfias?

— Abordam os jogadores nos países de origem, prometem-lhes um clube, muitas vezes com cartas-convite, e é bom realçar que há clubes em Portugal que são cúmplices dessas organizações criminosas, tornam-se verdadeiras barrigas de aluguer, criando expetativas aos jogadores que vão dar primeiro o salto interno e depois internacional.

— Estamos a falar de jogadores com que idades?

— No caso da BSports eram muito jovens. Mas na maior parte das situações são maiores de 18 anos. Mas mesmo os futebolistas entre os 18 e os 23 anos não deixam de ser jovens, que ainda não estão formados integralmente, mais a mais se vêm de países onde as condições de vida são difíceis. Do ponto de vista do dano que é infligido, naquele período de abandono, ao ser humano, trata-se de algo irreparável.

— Mas houve países europeus que antes de nós passaram pelo mesmo…

— Em 2001, a luxemburguesa Viviane Reding, que foi comissária europeia de Justiça, Direitos Fundamentais e Cidadania, foi confrontada com um fenómeno de jogadores abandonados, sobretudo na Bélgica, e exigiu à FIFA uma mudança de paradigma, nascendo aí o regulamento internacional que proíbe transferências  de menores de 18 anos no plano internacional e de menores de 16 no plano europeu. Seguiram-se as habilidades típicas dos clubes, que contratavam os pais e o filho só os acompanhava. Aliás, Real Madrid e Barcelona foram sancionados por essas práticas. De então para cá, a legislação foi apertando, mas só até aos 18 anos. E a verdade é que com 19 anos se continua a ser jovem adolescente!

 

— Esses jogadores, referenciados nos países de origem, são contratados porque lhes é reconhecido potencial futebolístico?

— Não. A única preocupação é ganhar dinheiro. Se por acaso algum deles tiver talento, é um bónus. Mas o esquema está organizado assim: há um clube em Portugal que aceita receber esse jogador, criando ilusão ao próprio e aos pais…

— De que tipo de clube falamos?

— A maior parte das vezes dos Distritais, muitas vezes financiados pelos agenciadores, que pagam um curto período de experiência, abandonando, de seguida, os jovens à sua sorte. A sangue frio. Muitos deles batem-nos à porta e só têm a mala. E este fenómeno está a expandir-se ao futebol feminino, há pouco fomos abordados por jogadoras colombianas a quem tinha sucedido o mesmo.