Entrevista A BOLA a uma vítima da Academia Bsports: «Ficávamos trancados a cadeado»

Futebol Entrevista A BOLA a uma vítima da Academia Bsports: «Ficávamos trancados a cadeado»

FUTEBOL17.06.202309:00

Fugiu da academia Bsports e o testemunho a A BOLA ajuda a perceber melhor a dimensão do caso que está a agitar o País, de privações e promessas não cumpridas a mais de 100 jovens futebolistas estrangeiros. Kelly, 20 anos, é um deles. Mesmo assim diz que teve uma «aprendizagem». O sonho de ser como o primo Ansu Fati é maior que o pesadelo de 14 meses.

- Como é que surgiu a oportunidade de ir treinar para a academia Bsports e quem é que ajudou a que a mesma se tornasse realidade?    
- Eu jogava numa academia em Bissau, chamada Tagara, que pertence ao meu tio. Ele conhece o senhor Cardoso da academia Bsports. Falou com ele sobre o meu caso, ficou interessado e disse-me para vir.

- Quem é o senhor Cardoso?
- Trabalha com Mário [Costa, ex-presidente da mesa da Assembleia Geral da Liga], é um olheiro.

- Desde quando joga futebol?
- Desde criança. O meu tio, em Bissau, viu que eu tinha qualidade e decidiu colocar-me na academia dele. Fiquei lá mais ou menos um ano, antes de ir para a Bsports.

- Quando é que entrou na academia BSports?
- Em outubro de 2021.  

- Como é que foram as suas primeiras impressões da academia?
- Senti dificuldade porque era a primeira vez que saía do meu país. Mas fui ajudado pelos meus colegas. Passadas umas semanas comecei a desenvolver. Mas três meses depois estava a ficar tudo diferente, descobri que aquilo não era o que eu queria.

- Como é que descobriu isso?
- Porque as pessoas lá de dentro diziam-me que ali não era sítio para eu estar, que tinha qualidade e ali nunca iria ter uma oportunidade para sair e treinar num clube. Seria apenas treinar 24 horas, sempre no mesmo sítio.
 

- A Bsports prometeu-lhe que iria treinar em clubes e em vários locais?
- Sim, disseram-me isso. E até me diziam que eu iria treinar-me em clubes grandes, como FC Porto e SC Braga. O diretor da academia chegou mesmo a dizer-me que já tinha tido a possibilidade de falar com tal clube para eu ir treinar, mas isso nunca aconteceu.

- Quando se refere ao diretor, refere-se a Mário Costa, o ex-presidente da mesa da Assembleia Geral da Liga?
- Correto.

- Mário Costa falava individualmente consigo ou para um grupo, prometendo que vos iria pôr a treinar num determinado clube?
- Falava com todo o mundo, mas também comigo pessoalmente. Dizia-me para não me preocupar, que ele estava a tratar do documento para ir treinar aqui ou ali, mas com o passar do tempo isso nunca aconteceu. Percebi que ele não estava a falar verdade.


- Portanto, passados três meses, começou a perceber que aquilo não era o que lhe tinham prometido. O que fez a seguir?
- Decidi que me queria ir embora. Falei com o meu pai, mas ele disse-me para aguentar porque tinha acabado de chegar, e fiquei até maio. Recebi uma chamada do meu pai nessa altura a dizer que já tinha falado com o senhor Cardoso, na qual ele lhe disse que já tinha marcado reunião com o SEF [Serviço de Estrangeiros e Fronteiras], a 15 de maio, para ir tratar dos documentos. Enquanto isso, eu era sempre pressionado na academia para assinar um contrato, mas sempre disse que sem documentos não assinava. Entretanto chegou o dia 15 de maio e perguntei-lhes sobre essa reunião, ao que me responderam que tinha havido um imprevisto. Aí comecei a desconfiar que nada daquilo era verdade.

- Porque só tinha um visto de turista e precisaria de um visto de residência, correto?
- Correto.

- E quanto ao seu passaporte? Esteve sempre na posse dele? Porque há jovens a relatar que ficaram com os seus documentos retidos.
- Tive de lhes pedir o passaporte. Não o queriam dar, mas como eu era maior de idade, eram obrigados a devolver-mo. Deram-me o passaporte, mas sempre tentaram tirá-lo. Diziam que precisavam dele para fazer isto e aquilo. Eu respondia-lhes ‘se é para assinar alguma coisa eu tenho de ir pessoalmente’.

- Portanto, quando recuperou o passaporte, nunca mais o devolveu?
- Exato. Eles pediam-me, mas nunca mais dei. Só que eles faziam isso com toda a gente e muitos acabavam a devolver os passaportes. Vi muitas brigas por causa disso.

- Porque decidiu sair da academia Bsports?
- Pelo ambiente que se vivia lá. Nunca tivemos liberdade, nem mesmo para nos expressar. Ficávamos lá trancados com cadeados durante 24 horas, sem conseguir sair das instalações. Se saíssemos para treinar em algum lado, éramos acompanhados por um segurança da academia.

- Nunca usaram os telemóveis para se expressarem?
- Muitos faziam isso. E mesmo dentro da academia tínhamos um grupo [de WhatsApp] para comunicar. Muitos alunos mandavam mensagens a dizer que estavam cansados, que queriam ir embora, que a comida não era boa... Eles [responsáveis da academia] viam as mensagens e não respondiam. Ficava cada um por si. Passados alguns meses muitos começaram a fugir. Saíam de madrugada.

- E você decidiu fugir também…
- Sim.

- Quando é que isso foi?
- Em dezembro de 2022. O meu pai tinha vindo de Inglaterra para me visitar, mas na academia não aceitaram que ele tivesse vindo ter comigo. Ficou muito irritado e disse-me logo para preparar as malas, porque me iria embora. Eles não queriam que eu fosse embora e nem me deixaram levar as malas. Decidi então pedir férias, porque já estávamos em dezembro e muitos estavam a ir de férias também. Disse que queria tirar uns dias para visitar o meu pai. Deram-me apenas cinco dias, dizendo que era para ir e voltar. Perguntei-lhes se podia levar a mala comigo e recusaram, que a mala tinha de ficar e que só podia levar a mochila.

- Qual foi a reação quando falhou o regresso das férias, no dia determinado pela academia?
- Ligaram-me sem parar, pressionando, dizendo-me que tinha de voltar. Aí disse: ‘nunca mais volto’.

- Diz que outros jovens tinham fugido. Como é que o conseguiram?
- Tinham algum dinheiro com eles e foram para um hotel. Depois saíram do país.

- Voltou a entrar em contacto com alguns dos antigos colegas que fugiram?
- Sim e perguntavam-me sempre ‘ainda estás aí?’. Eu respondia que não, que já tinha saído.

SACOS COM COMIDA CONFISCADOS À ENTRADA

- Como era o seu dia a dia na academia?
- O ambiente entre os alunos era amigável, o que facilitava. Mas ficávamos sempre 24 horas juntos. Nunca tivemos liberdade.

- Como eram as condições para dormir?
- Dormíamos em beliches. Éramos entre 10 a 12 pessoas em cada quarto.

- Era isso que lhe tinham prometido?
- Não, nunca esperei que iria ser assim. Sempre me disseram que me iriam dar boas condições. Por exemplo, que iria receber chuteiras para treinar, mas isso nunca aconteceu.

- E quanto à escola? Tinham aulas? Essa era uma das promessas quando entravam na academia?
- Tínhamos aulas, mas não como nas outras escolas. Só tínhamos aulas sobre questões ligadas ao desporto: nutrição, como perder peso, prevenção de lesões. Nunca tive matemática, química, física…

- A promessa foi que teria aulas do currículo escolar normal?
- Sim. Logo no primeiro dia, quando estava lá com o meu pai, disseram-me que teria um carro para me levar e trazer da escola, mas isso nunca aconteceu. A escola era lá dentro e não lecionava mais nada do que matérias de desporto.

- Tinham aulas todos os dias?
- Havia um horário, de segunda à sexta.

- Quantas vezes se treinavam por dia?
- Duas.

- Como eram os campos?
- Havia dois campos sintéticos, um deles muito mau, porque ficava muito quente quando as temperaturas aumentavam.

- E sobre a alimentação?
- Comíamos cinco vezes ao dia, mas a comida nunca foi boa. Aos fins de semana, nós, os mais velhos, podíamos fazer uma saída privada. Íamos ao Pingo Doce para comprar alguma comida para levar para a academia, mas o segurança proibia a entrada e ficava com os sacos.

- Quantos jovens estavam na academia?
- Éramos mais de 100.

- E menores?
- Uns 50.

- E como é que esses menores aguentavam aquilo?
- Muitos ficavam a chorar porque não podiam ir de férias nem ver as famílias. Só ouviam que o futebol era difícil, que era mesmo assim, que tinham de ficar distantes, mesmo nas férias.

- Eram de que países?
- Colombianos, peruanos, venezuelanos. Guineenses éramos seis.

- Como é que mais de 100 jovens conseguiram aguentar essa ausência de liberdade de que fala?
- Muitos começaram a revoltar-se e houve bastantes brigas. Outros não estavam bem mentalmente.

- Assistiu a cenas de violência?
- Sim. Mas para estar ali é preciso estar bem preparado mentalmente. Muitos chegavam e três meses depois já nem queriam treinar ou ir às aulas, só pensavam em sair. Por isso fugiram.

- Vimos fotografias de jogadores que dizem ter sido agredidos. Viu essas agressões?
- Só vi o aluno que foi agredido após a agressão, mas eu não estava no momento em que isso aconteceu. Foi um colombiano.

- Como era a relação com os seguranças da academia?
- Um dos segurançass era amistoso, os outros muito difíceis. Tentámos fazer amizade com eles para entrarmos com comida na academia, mas era muito difícil. Não deixavam.

- Presumo que se queixaram aos treinadores. O que eles vos diziam?
- Tentavam sempre ajudar-nos, eram os únicos em quem confiávamos. Sempre que falávamos sobre a comida ou a vida que levávamos lá, eles tentavam sempre ter reuniões com o diretor para ajudar, mas isso nunca teve efeito.

- A única pessoa com quem falavam diretamente para apresentarem as vossas queixas era com Mário Costa?
- Sim.

- E quantas vezes falou com ele?
- Mais de dez vezes. Sempre que tive oportunidade exigi mudanças, mas ele dizia ‘não se preocupe, vamos resolver’. Quando falávamos sobre comida ou sobre liberdade ele dizia que estavam a tratar disso.

PRESSIONADOS A PAGAR O QUE NÃO TINHAM


- Como é que famílias que passam por muitas dificuldades conseguiam pagar aquelas prestações de 500, 600, 1000 euros?
- O meu pai é que fez o contrato e não sei, sinceramente, quanto pagou. Mas eu era um caso diferente, porque identificaram talento.

- Mas a maioria pagava esses valores?
- Havia uns que até pagavam mais de mil euros. Um amigo meu teve problemas, porque o pai disse-lhe que já não tinha dinheiro para continuar a pagar e disse-lhe para ele voltar. Só que na academia não aceitaram que saísse e ficaram a pressionar o pai para continuar a pagar. Era um colombiano.

- Até que ano estudou na Guiné?
- Até ao 11.º. Disse que queria acabar o 12.º aqui, mas nunca me responderam. Diziam apenas para continuar a ir às aulas e continuar a treinar.

- Chegou a fazer algum jogo?
- Fiz mais de 20 jogos, mas apenas particulares. Nunca quis jogar oficialmente porque, para isso, seria necessário um contrato e sem documentação não podia assinar contrato. Não ia assinar papelada sem saber o que era.

- O seu pai nunca esteve ao corrente de tudo o que se passava consigo?
- Eu contava-lhe tudo, o quanto me sentia mal, mas ele depois ligava para a academia e mentiam-lhe. Diziam-lhe que estávamos fora do país quando, na verdade, estávamos era dentro das instalações. E por causa disso ele acabava a ficar sempre na dúvida.

- O que fez depois de sair da Bsports, durante estes meses?
- Decidi que ia treinar, que aquilo era passado. Tentei treinar-me em Portugal, mas é difícil. Estou a ser apoiado pelo Sindicato de Jogadores e espero conseguir ter uma equipa para poder treinar-me.

- Qual é o seu grande sonho?
- Ser jogador profissional e ajudar a minha família. E ser feliz.

- Em que posição joga?
- Na posição 10, falso 9 ou como extremo.

- Está com a camisola do Barcelona de Ansu Fati vestida. É o seu ídolo?
- É meu ídolo e meu primo.

- Já teve oportunidade de contar a sua história ao seu primo?
- Ainda não. Só falo com o pai dele.

- Se tivesse de descrever numa palavra o tempo que passou na academia Bsports, qual seria?
- Aprendizagem.

- Por aquilo que aprendeu ao nível da resistência?
- Sim, esse lado mau. Aprender o bom e o mau.

- Se não conseguir esse sonho, o que se imagina a seguir?
- Sempre pensei em desporto. Se não conseguir, vou tentar de novo. Vou morrer a tentar.

- Há muitos jovens que têm vergonha de verem os seus casos conhecidos, por ser um sinal de que falharam.
- Acho que sim. Muitos têm uma recaída. O que passámos ali é difícil de explicar.

- Se voltasse a falar com Mário Costa, o que lhe diria?
- Obrigado. Porque criei boas amizades, ali ganhei conhecimento sobre outra cultura. Ele deu-me uma chance e tentei. Mas ele não tentou. A culpa não é minha.

«ISTO É ASSUSTADOR»
 

A entrevista de A BOLA a Kelly Coiate foi realizada na sede do Sindicato de Jogadores (SJ), entidade que tem estado na linha da frente na defesa de vários futebolistas, seja na condição de abandonados ou apostados em sair de projetos cuja realidade é muito diferente do mundo de sonhos prometidos. Sobre este caso concreto, o presidente do SJ considera-o «assustador».


«É assustador e aparentemente a sua dimensão pode abalar de forma grave o futebol português. É incompreensível que pessoas ligadas ao futebol possam ter esta atitude e que haja tantas pessoas com responsabilidade envolvidas. A nossa prioridade continuará a ser a de exigir uma resposta articulada entre o Estado e o desporto para as vítimas», afirmou Joaquim Evangelista a A BOLA.