Entrevista A BOLA: «Entro em campo como se fosse a primeira vez»

Liga 2 Entrevista A BOLA: «Entro em campo como se fosse a primeira vez»

NACIONAL28.07.202313:11

Nenê celebra 40 anos hoje, em dia de jogo com o Vizela, e chega ao aniversário em momento prendado e ainda com o sensacional golo ao Chaves a ecoar. Um marco em carreira longa e que abraça Rui Patrício, Buffon, Luca Toni, Saviola e ainda uma infância difícil nas ruas de São Paulo como cobrador numa linha de autocarros. Um testemunho.

- O episódio mais recente da sua carreira tem marca extraordinária, com um golo ao Chaves que fica para sempre nos registos da Liga. Foi um momento de inspiração?

- Realmente foi um grande golo, mas para mim não deixa de ser mais um golo. Acima de tudo foi um bom trabalho de equipa, pois o momento da disputa de bola do John Mercado também foi importante para o lance. Mas o golo deixou-me muito feliz, vai ficar como momento importante nas minhas memórias, agora vou procurar dar-lhe sequência.

- É curioso, este golo ao Chaves tem muitas semelhanças com aquele que marcou a Rui Patrício num Nacional-Sporting em janeiro de 2009 numa tarde de nevoeiro na Choupana.

- Tenho boas memórias de alguns bons golos e esse entra nas escolhas, nesse ano tive oportunidade de marcar a Rui Patrício na Choupana e em Alvalade. O golo ao Chaves foi mais em zona central, ao Sporting marquei mais descaído para a direita, mas foi um golo belíssimo. Na partida com o Chaves os meus filhos estavam presentes no estádio, o clima foi muito emocional e naquele instante fiquei grato a tudo o que tenho feito até hoje no mundo do futebol.

- Sensivelmente um ano mais tarde tem ainda outro golo excecional ao Buffon num Cagliari-Juventus, também em remate fora da área mas desta vez em força.

- Sim, gosto muito de finalizar de fora da área e também gosto de finalizar em potência. Esse golo é precisamente num remate em força e reflete a minha dedicação. E é mesmo um grande golo, admito.

- Um golo com história curiosa, porque o Massimiliano Allegri, que na altura treinava o Cagliari, pediu-lhe para passar a bola, queria o cruzamento e não o remate.

- Sim, de facto foi isso que aconteceu, os meus companheiros de equipa que estavam no banco de suplentes falaram-me no final do jogo desse episódio. A jogada começa num livre a nosso favor no meio campo da Juve e quando recebo a bola descaído para o lado direito o Allegri pede um passe ou um cruzamento, mas eu estava confiante naquele momento, tenho um bom remate, e finalizei. Sei que depois o treinador levou as mãos à cabeça e comentou: ‘Meu Deus, que golo!’ No final ele veio ter comigo e assumiu que  a decisão de rematar foi a  mais correta.

- Para um ponta-de-lança um grande golo vale mais do que um golo comum, sem qualquer estética, ou vai dar ao mesmo?

- Um golo bonito tem um significado superior, mas conta igual. Podemos vencer 1-0 com um autogolo, o resultado é sempre o mais importante e o papel de um atacante não se resume aos golos que marca ou deixa de marcar, há um trabalho de equipa que devemos destacar. Agora, este golo ao Chaves teve uma carga emocional muito grande, o meu filho que vive em Itália estava na bancada, e quando se tem a família por perto, a esposa e os filhos, tu sentes que estás perto de fazer 40 anos e algo de especial ainda está a acontecer na tua carreira.

- Foi uma tarde perfeita, certo?

-  Não podia pedir mais, foi um presente de aniversário antecipado. Ter os meus na bancada num momento daqueles foi uma bênção.

- Ao longo da sua carreira o Nenê lida com grandes jogadores e grandes avançados. Luca Toni e Saviola, por exemplo. O que guarda da partilha de conhecimento com eles?

- Jogar com Luca Toni foi um orgulho para mim, aprendi muito com ele em Itália. Era um grande finalizador dentro da área, quando o defesa lhe concedia um espaço ele não perdoava, numa oportunidade ele fazia golo, realmente aprendi muito com ele e com Saviola, mas o conhecimento adquire-se não apenas com os atacantes, há defesas e médios que te marcam e jogar ao lado de Rafael Márquez também representou um passo importante. Quando és jovem tens que procurar os bons exemplos.

- E o Nenê seguiu esses bons exemplos?

- Se chego aos 40 anos a jogar é porque me dediquei e ainda hoje me dedico. Mesmo quando jogava menos dava tudo porque sentia que a oportunidade ia aparecer, e é nesse aspeto que tens que focar o teu trabalho. E foi essa experiência que eu fui recolhendo dos mais velhos, se trabalhas bem mais tarde ou mais cedo há sempre alguém que te vê e que te proporciona o teu momento.

- É essa mensagem que passa agora para os outros, nunca quebrar?

- Até pelo meu modo de ser, da minha atitude nos treinos, eu tento transmitir isso. Tenho 40 anos, a intensidade dos jogadores mais novos é um pouco maior e considero isso normal, mas nunca deixei de dar 100 por cento e não quero ser privilegiado pela minha idade, quero chegar a jogo e perceber que mereço o que estou a ter. Há um pensamento que me segue desde sempre, e que eu utilizo também no mundo do futebol, que diz que colhemos os frutos daquilo que semeamos. É algo que nunca falha.

- O Nenê chega ao futebol português em 2008 e faz época fantástica. O Nacional fecha a Liga no quarto lugar, você ganha a A Bola de Prata. Foi um ano de inspiração?

- Quando chego venho desacreditado da equipa B do Cruzeiro, tenho uma lesão difícil, enfrento uma paragem, mas nesse ano fizemos uma digressão que me correu bem e o professor Manuel Machado, que treinava o Nacional, pediu a minha contratação. O presidente do Nacional não me queria, porque eu vinha de uma lesão, mas o treinador insistiu. Estou-lhe muito grato. Na altura o Nacional tinha uma equipa de grande qualidade e essa grande época proporcionou-se. A equipa era muito boa, o treinador era muito bom, o Nacional batia-se de igual com qualquer adversário.

- E o Nenê ganha a A Bola de Prata na luta com grandes goleadores como Liedson, Cardozo, Ernesto Farías. Foi um grande momento.

- Normalmente estes troféus são assegurados por jogadores que representam equipas de primeiro plano, maioritariamente Benfica, Sporting e FC Porto, e chegar a melhor marcador do campeonato num momento em que vinha do Brasil desacreditado foi uma grande vitória.

- Começou a pensar na luta pelo troféu de forma gradual ou foi algo que aconteceu naturalmente?

- Na verdade, aconteceu naturalmente. Quando as pessoas me falavam em conquistar a A Bola de Prata eu nem sabia o que era isso... Para mim era algo com pouco significado, mas quando recebi o troféu despertei. É uma coisa muito bonita vencer aquele troféu, nunca imaginei.

- Quando faz um golo volta à sua infância, a uma cidade gigantesca como São Paulo? Não deve ter sido um período fácil.

- Penso em tudo isso sim, venho de uma infância muito difícil. Os meus pais eram separados, a minha mãe tinha três filhos para criar, aos 12 anos tive de sair de casa para conseguir alguma coisa para mim, uma roupa, umas sapatilhas... A cada corrida que eu faço no campo, a cada golo que marco, eu penso muito nessa fase da minha vida. No passado eu não tinha nada, nada, e sempre que olho para trás penso no futuro dos meus filhos, e tento transmitir-lhes toda essa experiência, para não passarem por aquilo que eu passei.

- O Nenê começa a trabalhar aos 12 anos. Era uma criança.

- Comecei como ajudante de condutor de autocarro, era o cobrador, o pica, e estive nessa atividade até aos 17 anos. Acordava às cinco horas da manhã, regressava às seis da tarde e depois ia para a escola, e voltava a casa à meia-noite. No dia seguinte começava tudo de novo. Mas não lamento nada, isso fez-me crescer, hoje olho para trás e percebo que valeu a pena, foi isso que me fez ganhar competências, e eu sinto essa energia toda dentro de mim quando estou em campo.

- O futebol entra tarde na sua vida.

- Tinha 17, 18 anos, quando surgiu a oportunidade de jogar no Santos. Aí deixei o emprego e aventurei-me. Até hoje.

- Que dimensão tem agora a sua carreira no Aves SAD?

- A minha missão é terminar em grande. Temos um excelente treinador, o Jorge Costa, temos jogadores de qualidade, agora é trabalhar, temos de pensar em grande e ir ganhando jogo a jogo. Hoje frente ao Vizela, depois o seguinte e por aí fora.

- Vai terminar carreira no final da época, portanto. Vê o futebol de maneira diferente face a essa perspetiva, absorve tudo para não perder nada?

- Eu entro em campo como se fosse a minha primeira oportunidade a cada jogo. Pretendo parar, aos 40 anos chega o momento em que tenho de partir para outro rumo dentro do futebol, mas entro em campo como se fosse a primeira vez, cada jogo é novidade. Normalmente chego ao final da partida exausto mas feliz com o que realizei, é sinal de que me entreguei ao jogo e à equipa. Mas vou pensando também no futuro, fiz o meu curso de treinador e quero dedicar-me a isso dentro em breve.

- O Pepe também já é quarentão, estão bem um para o outro, um central e um ponta-de-lança...

- Não é que seja mais fácil, mas um central tem ali a sua experiência, a sua zona de ação, consegue encurtar espaços que talvez os centrais mais novos perdem, são posições diferentes, talvez um atacante precise de mais velocidade. Como central dá para gerir mais, sobretudo numa equipa grande como o FC Porto, mas Pepe é Pepe.

- Como é que um atacante de 40 anos encara os jovens lobos, um central que na prática podia ser seu filho?

- Quando se entra em campo somos todos adversários, mais novos ou mais velhos, antigos companheiros de equipa ou não. Depois dos 90 minutos tudo acaba, mas no jogo eu estou de um lado e eles do outro. Há centrais jovens de grande qualidade e até aprendo bastante com eles, por vezes procuram conversar comigo e brincam, pedem para não fazer tantos golos que isso pode prejudicá-los. É um bom instinto de defesa, um bom argumento.

- Acha que pode ensinar alguma coisa às gerações mais novas?

- Acho que não devo guardar para mim aquilo que aprendi, posso partilhar as minhas ideias com quem quer ser ajudado, é esse o meu pensamento de futuro.