Espaço Universidade O(s) valor(es) dos atletas fora do campo (artigo de Rui Biscaia, 4)
O impacto da pandemia de COVID-19 no desporto a nível mundial chamou a atenção, entre muitas outras coisas, para o papel social dos diversos atores do ecossistema desportivo. Desde ações institucionais por parte de clubes e ligas, passando por grupos de adeptos, treinadores ou atletas, foram muitos os exemplos de contributos diretos ou indiretos no combate à pandemia. Por ora, centremos a atenção nos atletas dado que são o elemento central do ecossistema desportivo e nem sempre recebem a atenção que seria de esperar.
Independentemente das formas de apoio e motivações, os atletas profissionais têm vindo a envolver-se cada vez mais em causas sociais, sendo o movimento More than an athlete bem ilustrativo da importância que podem ter fora do contexto deportivo. Nos últimos meses, em resposta à pandemia, multiplicaram-se as iniciativas de atletas que fizeram uso do seu capital social e/ou financeiro para doar dinheiro, tempo e bens a pessoas e instituições. Por exemplo, Kevin Love, basquetebolista dos Cleveland Cavaliers, foi um dos primeiros atletas a ajudar os trabalhadores do pavilhão onde joga a sua equipa que ficaram sem emprego quando a NBA suspendeu o campeonato, doando US$100.000. Por sua vez, Anthony Davis (Los Angeles Lakers) fez uma parceria com a Lineage Logistics para ajudar os funcionários do Staples Center a encontrar trabalho durante a paragem da NBA, conseguindo angariar US$250.000 para ajudar uma organização que compra comida em restaurantes locais e depois faz as entregas a trabalhadores de hospitais locais.
Noutro exemplo, a iniciativa #WeKickCorona, lançada por dois futebolistas do Bayern de Munique (Leon Goretzka e Joshua Kimmich) tem sido um excelente exemplo de solidariedade social, angariando dinheiro e outros apoios para inúmeras pessoas e instituições em dificuldades neste período de crise. De forma semelhante, a carta aberta escrita no Twitter por Marcus Rashford, futebolista do Manchester United, foi partilhada por mais de 160.000 pessoas e ajudou a persuadir o governo britânico a prolongar o esquema de distribuição de refeições escolares gratuitas a crianças de famílias desfavorecidas. Também em Portugal foram vários os atletas que ajudaram no combate à pandemia, sendo a doação de 50% do prémio de qualificação do campeonato da Europa por parte dos atletas da seleção nacional de futebol talvez o caso mais mediático.
Obviamente que nem todos os atletas têm a capacidade de influenciar decisores políticos ou doar dinheiro, mas muitas outras formas de apoio têm sido usadas para ajudar no combate à pandemia. Doar dinheiro para comprar material médico ou refeições para as pessoas em dificuldade não terá, provavelmente, o mesmo impacto que escrever nas redes sociais a pedir aos cidadãos que sigam as recomendações das entidades médicas. No entanto, apesar do capital simbólico dos atletas variar, os diversos contributos têm sido importantes para ajudar no combate à pandemia e estabelecer exemplos positivos para o futuro. Maxime Mbanda, jogador de râguebi do Zebre e da seleção italiana foi motorista voluntário de uma ambulância durante o período mais crítico em Parma e exemplifica bem o crescente envolvimento dos atletas em causas sociais. Por cá, as atletas Marta Onofre (salto à vara), Francisca Laia (canoagem), João Diogo (râguebi), Diogo Lima (Judo), Francisco Belo (lançamento do peso), Leila Marques (natação adaptada), Ana Francisco (natação), Ana Rente (trampolins) e Mário Soares (andebol) foram também destacados no jornal A Bola por integrarem a linha da frente no combate à COVID-19.
Todos estes exemplos mostram que os atletas podem ter um papel social que vai além da performance desportiva, sendo que muitas outras iniciativas foram reportadas na comunicação social e outras tantas terão passado despercebidas. Os atletas têm hoje uma melhor compreensão do potencial que lhes confere a sua notoriedade local, nacional ou internacional. Este protagonismo, parcialmente potenciado pelas redes sociais, permite-lhes influenciar milhares de pessoas e dar um contributo que se estende muito para além das suas modalidades desportivas. Naturalmente que este envolvimento social é uma escolha voluntária, porquanto permaneça alguma controvérsia sobre se têm ou não mais responsabilidade de agir do que qualquer outra pessoa. O que é consensual é que frequentemente beneficiam duma plataforma que lhes permite atuar com impacto social, influenciando o comportamento de seguidores e até governos, e que esse impacto é de alguma forma proporcional à sua popularidade. Quando agem, o seu contributo é habitualmente visto como uma forma de retribuir à sociedade pelo estatuto social que auferem, se bem que os atletas têm geralmente carreiras curtas e uma elevada percentagem enfrenta, infelizmente, dificuldades na transição para o pós-carreira desportiva.
Controvérsias à parte, o que creio confirmar-se pelos vários exemplos dos atletas mencionados e tantos outros similares é que, ainda que distintos em valor financeiro e impacto, estes atletas partilham valores que enriquecem o seu papel social, muito para além do ecossistema desportivo.
Rui Biscaia
Associate professor na School of Marketing and Management e Associate do Centre for Business in Society – Coventry University, Reino Unido.