Um encontro com a grandeza
Parece-me que temos as armas e a confiança necessárias para ferir o adversário e estragar os planos ao enorme Xavi
Aboa publicidade é eficaz a comunicar os atributos de um produto ou de uma marca. A melhor publicidade é a que parte de uma verdade acerca de nós para nos contar uma boa história (e vender um produto ou uma marca). Vem isto a propósito do jogo de hoje em Barcelona. Este fim de semana, enquanto lia análises à vitória frente ao Paços e especulava junto dos deuses sobre as probabilidades de recuperação do João Mário, fui rever quantas vezes ganhámos ao Barcelona em competições europeias, só mesmo para ter a certeza que foram duas. Duas vitórias em oito jogos. Uma foi há 60 anos, a outra aconteceu há pouco mais de seis semanas. São demasiadas as diferenças entre uma vitória e outra, mas esta última está fresca na memória de todos. Fez-nos acreditar num Benfica maior a nível europeu, ainda que a realidade das semanas seguintes, frente a uns alemães impiedosos, nos tenha demonstrado que ainda estamos longe disso.
A boa publicidade que recordei a propósito da visita a Camp Nou não é sobre o Benfica, mas tem tudo a ver com o modo como se vive Benfica e como outros adeptos vivem a sua paixão clubística. Há uns anos uma marca de cervejas espanhola decidiu criar uma nova campanha publicitária e para isso juntou numa sala pares de velhos amigos que não se viam há muito tempo. A celebração do reencontro foi bastante sentida e o mote perfeito para aquilo que se seguiu. Depois de responderem a algumas perguntas sobre a sua amizade - como se conheceram, desde quando se conheciam, e a frequência dos seus encontros - os amigos são confrontados com uma estatística. É apresentada a cada um deles a matemática simples daquela amizade: cada amigo fica a saber que, pelo andar da carruagem, vai estar com aquele amigo mais meia dúzia de vezes até ao fim da sua vida. A história acaba com muitos amigos comovidos, a maioria em lágrimas, perplexos com a conclusão simples mas desarmante. Nisto, entra a voz de um narrador que explica a natureza efémera de tudo isto, a importância de cada momento vivido entre amigos, e a necessidade de garantir que os encontros acontecem mais vezes, de preferência com uma cerveja na mão. Tão cedo não me esqueço deste anúncio.
Vitória por 3-0 sobre o Barcelona, no Estádio da Luz, faz acreditar adeptos e sócios, segundo Vasco Mendonça, «num Benfica maior a nível europeu»
Por muito que a frieza volte a imperar quando já tudo passou e nos lembrarmos que só vale três pontos, aquela noite em que começámos o jogo praticamente em vantagem frente ao Barcelona, marcámos outro e voltámos a marcar, não será ignorada. Talvez não tenha chegado para fazer do Benfica novamente um grande europeu dentro de campo, mas não deixa de ser uma grande história para contar muitas vezes, e uma história que pode servir de inspiração para esta equipa e para as próximas, que são tão ou mais importantes - isto porque a construção de um Benfica de dimensão europeia não se decide esta noite, mas, por cada vitória que se conseguir numa noite como esta, há mais jogadores deste plantel que passam a acreditar, há mais adeptos que confiam, e há mais atletas que chegarão a um clube galvanizado e regenerado pelo resultado que sempre conheceu melhor. Não há melhor antídoto contra as ameaças de desestabilização, apontadas oportunamente por Rui Costa. No fundo, é disto que se faz a construção ou reafirmação da identidade de um clube como o Benfica. Podíamos falar de muitos aspetos culturais, históricos e associativos que definem o clube, mas a verdadeira identidade de um clube com a dimensão do Benfica é ganhar.
É por isso que o jogo de hoje nunca será só mais um jogo. Logo à noite, quando a equipa entrar em Camp Nou, e depois de o jogo terminar, eu saberei que não têm sido assim tantas as oportunidades que temos de viver noites como estas. A equipa chega galvanizada por duas reviravoltas no resultado e uma dezena de golos que parecem confirmar o regresso da melhor condição tática e anímica, com ou sem João Mário. Por seu lado, o Barcelona parece melhor e, na estreia do novo treinador, mostrou desde logo uma posse de bola mais próxima da filosofia da casa, mas com pouca consequência no ataque e alguma permeabilidade na defesa. Parece-me que temos as armas e a confiança necessárias para ferir o adversário e estragar os planos ao enorme Xavi.
Tal como os amigos na publicidade à marca de cerveja, o Benfica e os benfiquistas sabem que precisam de mais reencontros, neste caso com a grandeza. Mas, ao contrário dos amigos que ficam perplexos quando percebem que o tempo está a voar e deviam combinar já a próxima cerveja, os benfiquistas há muito que sabem desta urgência e se angustiam por isso. Por um lado, não sabemos exatamente quantas oportunidades temos pela frente para viver grandes noites europeias. Dêem-nos só mais uma para a história e seremos felizes por uma noite. Mas também sabemos que é sempre mais do que isso. Se queremos reafirmar aquilo que somos, só lá chegaremos disputando e ganhando dentro de campo, muito mais vezes, contra os melhores, até isso se tornar novamente um hábito e deixarmos de suspirar por aquilo que não vivemos ou pelo pouco a que podemos aspirar. É difícil, mas recompensador. Como explicou Cosme Damião, «a ideia do clube seguiu-se ao prazer do triunfo». Que hoje seja mais um passo de volta ao único caminho digno do Benfica.