Tocar primeiro na bola e depois atingir o adversário é falta?
SC Braga-V. Guimarães da época passada terminou com um empate (1-1). Foto: HUGO DELGADO/LUSA

Tocar primeiro na bola e depois atingir o adversário é falta?

OPINIÃO09.01.202417:20

Duarte Gomes faz um esclarecimento técnico

Tocar primeiro na bola e depois atingir o pé/perna do adversário

Quantas vezes já vimos lances assim, sem percebermos bem quando é que há e quando é que não há infração? Quando é que o árbitro deve sancionar e quando é que deve deixar seguir o jogo?

E o que dizem as leis de jogo? Estes lances estão previstos nas regras? 

Já lá vamos. 

Primeiro e só para nos situarmos, alguns exemplos de situações ocorridas esta época:

1 - SC Braga-Vitória de Guimarães (74')

Vítor Carvalho, na sua área, tocou na bola, atingindo depois o pé de Jota (pisão evidente). A equipa de arbitragem nada assinalou.

2 - SC Braga-Benfica (75')

Lance na zona do meio-campo: Peter Musa tocou na bola e atingiu depois o pé de José Fonte, lesionando-o. O árbitro entendeu que a infração foi do central bracarense e exibiu-lhe o cartão amarelo. 

3 - Famalicão-Chaves (21')

Nathan, na sua área, desviou a bola e na sequência atingiu o pé de Rúben Ribeiro. O árbitro assinalou pontapé de penálti, após intervenção do VAR. 

Três situações 'tecnicamente semelhantes', três decisões distintas. 

O meu contributo:

- Importa perceber, em primeiro lugar, que estes lances não estão objetivados nas leis de jogo. Não há nenhuma regra que explique factualmente como devem ser avaliados ou decididos. 

O árbitro tem a missão ingrata (que ele próprio dispensava) de interpretar cada caso e atuar em função de algumas "ferramentas" que resultam do espírito da lei.

Por partes. 

A Lei 12 refere que o contacto físico faltoso tem que ser imprudente, negligente ou praticado com força excessiva.

Se não corresponder a nenhuma dessas três premissas, é legal.

As infrações cometidas com negligência ou força excessiva são geralmente mais fáceis de analisar, porque implicam respetivamente despreocupação na abordagem ao lance (com as consequências que podem surgir para a integridade física do adversário) ou o uso de força/intensidade extremas, muita acima do que a «dividida» pedia. 

Nesses casos e para além da sanção técnica (pontapé-livre ou pontapé de penálti), a primeira é punida com cartão amarelo e a segunda com vermelho direto. 

O problema é quase sempre percebermos quando é que o contacto é legal e quando é que é imprudente. Na prática, quando é que há e quando é que não lugar à infração. 

E esse é também é, sublinhe-se, o maior dilema dos árbitros. 

As regras sugerem que os contactos naturais acontecem geralmente de forma correta, acidental ou fortuita. Aqueles em que o jogador aborda o lance de forma totalmente legal e tudo o que acontece depois é inevitável. O atleta não faz nada «a mais» ou «acima» do que a intervenção pedia, disputa o lance legalmente, sem quaisquer culpas do que surja depois. Nesses casos, segue jogo.

Já a imprudência pune a «falta de cuidado ou de atenção» na abordagem: se um jogador entra de forma mais descuidada, se faz um carrinho de maneira algo desatenta, se não tem atenção na forma como se faz ao lance - mesmo que jogue antes a bola e não tenha intenção de atingir o adversário - tem que ser punido tecnicamente. É a sua imprudência que é castigada.

Agora peguem nestes dois conceitos e coloquem-nos em campo, na prática. Tentem, por exemplo, aplicá-los aos exemplos dados acima. 

Não é fácil, pois não?

A verdade é que nunca haverá consenso nesta matéria, nem entre os próprios árbitros nem entre comentadores de arbitragem, nem sequer entre quem os avalia e classifica. Obviamente que nunca haverá consensos também em quem, cá fora, olha para o lance na expetativa que seja (ou não) sancionado.

A menos que a abordagem seja notoriamente desmedida, será sempre difícil garantir quando é que um jogador que toca primeiro na bola, comete depois infração sobre o seu adversário.

Um dos truques que pode ajudar a percebermos melhor estes lances, é perguntarmos a nós próprios: 

- Será que o que aconteceu após o toque na bola foi absolutamente inevitável? O jogador que a tocou não tinha como evitar o contacto posterior? O seu pé teve mesmo que «aterrar» naquela zona, onde por azar estava o pé do adversário? Nada podia ser feito para evitar aquela consequência?

- Ou, por outro lado, a sua abordagem foi descuidada? Ele de algum modo «pôs-se a jeito» ao dividir o lance de forma tão desatenta? O contacto posterior era evitável daquela forma? Houve descuido?

Se entenderem que a situação responde às primeiras questões, não há infração. Se acharem que responde às últimas, há.

Dica adicional

- Bom senso, sensibilidade e ótimo conhecimento técnico e tático do jogo (e dos jogadores) ajuda a decidir de forma mais justa este tipo de lances. 

Quando um árbitro percebe mesmo de bola, quando sente o jogo e lê bem o seu contexto, o momento e forma como o contacto acontece, a maneira como surge... é quase sempre mais fácil acertar.

Mas não se esqueçam, em tudo o que não for cristalino e factual, não há Maradonas. Não na arbitragem.