Silêncios ensurdecedores
A FIA depois da FIFA. Dois maus exemplos de limites à liberdade de expressão! O desporto é bandeira do progresso social, não do retrocesso
O Mundial de futebol alimentou polémicas antes e durante o Catar-2022. A FIFA, procurando refúgio na argumentação bondosa da readaptação de todos os comportamentos às normas e tradições do país anfitrião da competição, mandou às malvas princípios fundamentais nas sociedades modernas como a tolerância à diversidade ou a promoção da equidade e da inclusão. Durante o torneio, é verdade, prevaleceu o bom-senso, facto que explica a ausência de registos de problemas com as autoridades de estado com regime autocrático que limita direitos, garantias e liberdades.
Também pela receção tolerante dos fãs do futebol, este Catar-2022 que a Argentina ganhou de forma mais do que brilhante, ganhando à França, no desempate por penáltis, na final mais excitante e louca de que tenho alguma memória (isto, sim, é futebol), pode classificar-se de sucesso estrondoso! Mas, para memória futura, não podemos esquecer-nos nunca do muito que FIFA proibiu nas vésperas da competição. Assim, na hora de decidir-se a organização de outra competição com esta dimensão, talvez o humanismo valha mais do que o dinheiro, a influência, o poder.
No mundo globalizado em que vivemos, o desporto é ferramenta de comunicação poderosa que aterroriza, principalmente, as autocracias. A Federação Internacional do Automóvel (FIA), organismo sob a liderança de cidadão dos Emirados Árabes Unidos, Mohammed Bem Sulayem, não interpretou bem os sinais dos tempos e, discretamente, atualizou o Código Desportivo Internacional. Há artigo novo (12.2.1) no documento que não é mais do que um tipo de lei da rolha, por proibir todas as «declarações políticas, religiosas e pessoais» - exceto, e sublinhe-se esta exceção, no caso de consentimento expresso do organismo para essas manifestações.
A censura que agride a liberdade de expressão entra em vigor a 1 de janeiro de 2023. Aplica-se a todas as competições realizadas sob jurisdição direta ou indireta da FIA, que tentava adotá-lo há vários anos. Ainda sob a direção do francês Jean-Todt, no gabinete de 2009 a 2021, proibiram-se diversos tipos de intervenção, vide a protagonizada por Lewis Hamilton em 2020, no pódio da ronda 9 do Mundial de Fórmula 1 (Grande Prémio da Toscânia), em Mugello (Itália), onde o piloto britânico da Mercedes apareceu com t-shirt que trazia inscrita a denúncia do assassinato de cidadã negra norte-americana, supostamente por polícias. Então, o comportamento investigou-se e o episódio não teve consequências...
No campeonato mais mediático da FIA, que tem promotor norte-americano (Liberty Media), o Mundial de Fórmula 1, o inglês e o alemão Sebastian Vettel, principalmente estes dois, ignoraram os princípios da neutralidade que o organismo anuncia e tornaram-se ativistas importantes de movimentos sociais relevantes (respetivamente, defesa dos negros e proteção do ambiente). A versão atualizada do Código Desportivo Internacional não determina penalizações para as infrações, mas a federação tem Código de Conduta que admite desde multas de €25.000 à proibição da participação em corridas/grandes prémios.
A FIA, como a FIFA, diz concentrar-se só no desporto, mas está errada. Os dois organismos, atuando assim, regridem nos progressos e contradizem-se. Ambos eliminaram a Rússia das competições, após a invasão da Ucrânia pelas tropas do Kremlin. Isto é intervenção política - muito boa intervenção política. Que deceção!...
Em 2023, no calendário do Mundial de Fórmula 1, somente no Médio Oriente, 4 grandes prémios (!) todos em países que têm legislações contra a comunidade LGBTQ+: Barém, Arábia Saudita, Abu Dhabi e Catar. Na europeia Hungria, idem, aspas! Antecipam-se muitos silêncios ensurdecedores.