Se amas o futebol, pões o Neres a titular

OPINIÃO22.08.202306:30

Quem dinamita um jogo como o talentoso brasileiro fez no último sábado não pode ser suplente

ACABA o jogo e há uma sensação de alívio. A vitória, com futebol mais do que suficiente para justificar o resultado, foi dificultada por um Estrela da Amadora que se soube organizar defensivamente, e também por algum desacerto do Benfica, que não entrou em 2023/2024 naquele pico de forma da época anterior que tanto entusiasmou desde o primeiro segundo. 

Há uma série de jogadores ainda à procura da sua melhor versão, algumas dúvidas importantes no meio-campo - defensivo e ofensivo - e nas alas - ofensivas e defensivas -, temos um novo ponta de lança que vai precisar de tempo para se ambientar, uma decisão para tomar em relação ao dono da baliza - e tempo para o novo guarda-redes se adaptar-, e será justo dizer que o próprio Roger Schmidt também procura a sua melhor versão, uma mais próxima da que vimos na época passada.

Passam mais alguns minutos e sou surpreendido com uma sentença ditada pela estatística. O melhor em campo, dizem as métricas, foi Kokcu. Os dados da análise ao nosso dispor têm este efeito extraordinário de contar uma verdade que é frequentemente esmagada por aquilo que o adepto foi capaz de descortinar e, acima de tudo, memorizar. 

Foi assim que me indignei momentaneamente com uma apreciação que fazia dos 17 passes progressivos de Kokcu um hino ao futebol, qual futebol jogado de régua e esquadro, quando tudo o que os meus olhos recordavam foi o nó cego que David Neres desatou com os pés para, com um par de intervenções geniais, dar uma vitória merecida ao Benfica.
 
Há dados sobre todos os jogadores e há opiniões para todos os gostos. Há quem diga que Neres é pouco consistente, que não corre tanto quanto devia, há quem observe que Neres joga melhor a partir da direita, há quem diga que é na esquerda, há quem jure a pés juntos que ele joga melhor no último terço, há quem diga que o virtuoso brasileiro gosta pouco de treinar, há quem alerte que ele tem os olhos muito fechados, e há até quem se queixe que David Neres não defende, logo ele que foi contratado para discutir uma vaga com António Silva e Otamendi. Há quem jure a pés juntos que Neres sai muito à noite e gosta demasiado de beber. Se for assim, digam-me qual é o bar que eu vou lá pagar-lhe um copo. 

As preocupações do adepto de futebol são hoje tão legítimas quanto fatídicas. Munido de informação até ao tutano, em doses iguais de conteúdo analítico e o estupefaciente disponibilizado pelos traficantes de rumores, o adepto emite opiniões autorizadas pela montanha de dados disponíveis, deixa-se engolir pela overdose de tática despejada em cima dele, ou então pela sabedoria das multidões que chegaram aos dados antes de si e tentam desesperadamente fazer do futebol uma ciência exata, em que o futebol não identificado pelo software se torna uma anomalia. 
 

Neres, 26 anos (2.ª época no Benfica), recebe cumprimento do treinador Roger Schmidt, no último sábado, pelo jogo com o E. Amadora


Eu, que até gosto do lado analítico e lhe reconheço valor, só tenho uma certeza: não sei o que diz o software, mas sei o que dizem os meus olhos e o meu batimento cardíaco quando David Neres pega na bola. Dizem-me que ele tem de ser titular. 

Reparem, eu sei que perdi esta guerra antes mesmo de a começar. A minha opinião é hoje fundamentalmente tida como ignorante a não ser que possa ser corroborada pelo número de quilómetros percorridos ou pelo número de ações entediantes realizadas por Neres ao longo de um jogo, tudo o que permitir mostrar a sua formidável ética de trabalho. Mas a forma como entrou em campo e fez gato sapato de uma defesa do Estrela da Amadora que parecia competente até esse exato momento, bom, essa arte tende a passar despercebida e é hoje desrespeitada. Se Romário jogasse hoje, teria sido impedido de ir ao Carnaval depois de bisar, tal como tinha combinado com Cruyff. O detetive privado pago pelo clube a quem Romário pagou um copo? Já tinha criado uma conta falsa no twitter para divulgar fotos suas a viver bem.

Não me lembro de alguma vez o ter visto defender, e não me lembro de alguma vez o ter achado pior jogador por causa da sua vida noturna. Lembro-me de, ao longo da adolescência, imitar sem sucesso a forma elegante, sorrateira e letal como ele marcava golos. Disso lembro-me bem.

Se me entusiasmo muito com anomalias estatísticas e peço uma equipa mais virada para isso, logo aparece um cientista a explicar que não é possível ter Di Maria e Neres em campo, porque desse modo ninguém defende e o planeta pode implodir, como se uma tragédia viesse ao mundo por o Benfica defender um pouco menos e atacar muito mais, como se o Benfica estivesse preocupado em jogar para um ponto, ou tivesse vindo ao mundo para eliminar todo o risco e moderar o entusiasmo dos adeptos. 

Chamem-me lírico, mas é isso que é ser adepto de futebol. Estou farto da ciência. Não somos todos treinadores nem gestores desportivos nem coisa nenhuma que nos deva fazer exigir mais do que o melhor espectáculo possível, se possível à altura do emblema. 

É por isso que insisto: sujeitar as escolhas de uma equipa com o volume de talento ofensivo ao dispor de Schmidt a preocupações desmesuradas com o que acontece quando o nosso adversário eventualmente recuperar a bola, como se o objetivo não fosse marcar meia dúzia de golos antes disso, parece-me um erro. 

Vejo futebol há alguns anos. Gosto muito de jogadores que conferem ordem a uma equipa e tornam a coreografia mais discernível, mas, até hoje, não ouvi alguém atribuir ao equilíbrio ou à organização defensiva o dinheiro bem empregue num bilhete para um jogo do Benfica. 

Sim, os adeptos celebram um desarme do Otamendi que vale pontos ou uma recuperação agressiva do Florentino que põe a bola mais perto da baliza adversária para um colega marcar, mas ninguém sai do estádio a pular de alegria com as 6,3 recuperações de bola no meio campo adversário. E não quero de maneira nenhuma ser ingrato com um jogador que talvez devesse ser titular, mas esses desarmes são um meio para um fim. 

Criem condições para que jogadores como Di Maria ou Neres, nascidos para levantar estádios cheios, respondam ao chamamento divino que lhes deu uma carreira. Se não for para isso, então para que os queremos no plantel?

Assuma-se o bom problema que é ter estes talentos disponíveis e monte-se uma equipa que permita acomodá-los o máximo de tempo possível no relvado, que é onde têm de estar. Quem dinamita um jogo como Neres fez no último sábado não pode ser suplente. Jogadores como ele sabem o que trazem a um jogo: a possibilidade de o tornar memorável. Devemos correr alegremente esse risco em todos os jogos, do primeiro ao último minuto.