Pronto a servir

OPINIÃO15.03.202206:00

É normal escrutinar decisões dos árbitros. O problema é o aproveitamento malicioso

NÃO sei se andam atentos, mas esta é aquela fase do campeonato em que começamos a ser servidos com os pratos do costume. A primeira liga portuguesa avança agora para as grandes decisões, o que significa que a importância de ficar no topo da classificação assume outros contornos, mais importantes e impactantes. Convém não esquecer, por exemplo, que ser segundo ou terceiro não tem relevância apenas desportiva: a entrada direta na fase de grupos da Liga dos Campeões representa um encaixe financeiro muito significativo para as nossas equipas e isso são dados que contam. Legitimamente.
Mas essa ambição obriga-nos a olhar para a outra face da moeda. É que, enquanto tudo estiver por decidir, o menu do dia será invariavelmente o mesmo a que temos assistido nas últimas jornadas: muito ruído em torno das arbitragens, dos árbitros e videoárbitros, seja por erros que realmente cometeram, seja pela perceção de erros que, na realidade, nunca aconteceram.

Antes de mais, ponto de ordem à mesa: ao contrário do que muitos apregoam, entendo que falar de lances de jogo em alta competição é algo natural e expectável. Os árbitros são agentes integrantes de um jogo que pode valer milhões. É perfeitamente normal que algumas das suas decisões sejam escrutinadas e comentadas na opinião pública. O problema não é (nunca será) a discussão salutar que pode e deve ser feita em torno dessa variável: é o aproveitamento malicioso, propagandístico e mentiroso que ela potencia. Um aproveitamento oportunista que, ora serve de arma de arremesso, ora de bomba de atordoamento, destinada a confundir as pessoas ou a colocar o odioso na casa do vizinho. É esse uso perverso que me incomoda. A tática serve a todos aqueles que pretendem vitimizar-se, incendiar a opinião pública ou, mais importante, manter um clima de guerrilha que leve as pessoas a não fazerem as perguntas certas.

É que enquanto o povo fala da intensidade das cargas, da entrada que originou a expulsão ou da não intervenção do VAR num lance maroto, ninguém se debruça sobre questões importantes como o baixo tempo útil de jogo, o drama das simulações, as altercações nos bancos técnicos ou as relações privilegiadas entre banca, poder político (autarquias incluídas) e algumas sociedades desportivas.
Enquanto se enchem blogues, sites e media com poeira arbitral, não se fala de empréstimos de milhões, compras a preço de saldo ou processos pendentes em tribunal. Parecendo que não, dá jeito.
O expediente em si é inteligente sob o ponto de vista estratégico e de controlo de danos. Chapeau.

O que custa mesmo a digerir é a forma como ele funciona.
As mesmas pessoas que ficam completamente desvairadas com penáltis, anestesiam por completo perante tudo o resto.
Isso diz muito sobre a nossa cultura desportiva e até educação, formação de base. Diz muito sobre a nossa (in)capacidade em percebermos coisas estruturalmente importantes. A paixão pelo jogo e a latinidade desculpam algumas coisas, mas não justificam tudo.