Paz podre!

OPINIÃO03.03.202306:00

O Benfica arrisca dar ‘tiros no pé’ suficientes para pôr em causa o objetivo desportivo

IGNORO se os maiores especialistas ou os profissionais dos clubes têm esta opinião, mas julgo que, hoje, talvez mais do que nunca, só ganha no futebol quem consegue verdadeira união, coesão, compromisso, e não apenas, evidentemente, na equipa ou na estrutura exclusiva do futebol profissional, mas em todo o universo de um clube. Há, talvez, ainda quem pense que para se ganhar no futebol basta ter bons jogadores, bom treinador e, com eles, fazer boa equipa. É mentira. É, pelo menos, a mentira que concluí em mais de 40 anos de vida nos jornais a acompanhar o futebol.

Sem coesão, sem espírito comum, sem unidade, sem atmosfera positiva, sem se respirar confiança, estabilidade, defesa em grupo, dificilmente se ganha no desporto de alta competição, e, sobretudo, dificilmente se ganha numa indústria como a do futebol profissional, que depende tanto da mentalidade, da inteligência emocional (não confundir com inteligência artificial...) e da confiança e exige tanto espírito comum.

Sem isso, podem ganhar-se jogos, mas não se ganham títulos; ganham-se, eventualmente, troféus, de um, dois ou quatro jogos, mas não se chega ao sucesso nas grandes competições. Ninguém conquista o 1.º lugar numa maratona a correr muito depressa, a desperdiçar energia, a duvidar de si próprio, a olhar para as sombras ou a ziguezaguear; as maratonas exigem equilíbrio, inteligência, método, estratégia, e, reparem, trata-se de um desafio individual. Agora imaginem uma equipa de futebol, inserida num grupo de trabalho de mais de 40 pessoas no total, num grande clube como Benfica, FC Porto ou Sporting, com milhões de adeptos, cheios de redes sociais, grupos de pressão, influenciadores, e, até, líderes de opinião, comentadores televisivos (papel dimensionado de forma surpreendente nos últimos dez anos) ou, simplesmente, desestabilizadores profissionais, como designaria alguma armada pretoriana constituída a partir de algumas claques de clubes, como sucede, de modo mais evidente, no universo do FC Porto.

Basta lembrar como, há uns anos, chegou ao tribunal, chamado a prestar declarações, o presidente dos dragões, fortemente rodeado de adeptos do clube, integrantes da claque Super Dragões, como nunca se viu em nenhum dos grandes clubes de Lisboa. Questão, certamente, de cultura. Mas que expressa a força coletiva de uma organização e o que ela é capaz de promover numa atividade como o desporto profissional ou, concretamente, como o futebol de competição ao mais alto nível.
 

NO Benfica, como maior instituição desportiva nacional, é histórica uma certa realidade que poderia ser retratada por clube de paredes de vidro. É um clube gigantesco; num clube gigantesco, há muito gente; quando há muita gente, há muitas opiniões; quando há muitas opiniões, é mais provável haver mais controvérsia; e quando há muita controvérsia, é difícil conseguir estabilidade ou, no mínimo, conseguir estabilidade por muito tempo.

No Benfica, a estabilidade apenas foi mais duradoura enquanto existiu o presidencialismo de Luís Filipe Vieira. No FC Porto, independentemente do estilo e sistema imposto, presidencialismo absoluto de 40 anos promoveu, como se sabe, estabilidade interna nunca verdadeiramente questionada. Já no Sporting, a sucessiva mudança de presidentes neste século não pode ter deixado de contribuir para os resultados desportivos que se conhecem.
 

Acoesão, num clube que existe para promover espírito competitivo, participação desportiva e vitórias, devia levar os responsáveis a sentir maior necessidade ainda de remar, em conjunto, para o mesmo lado. No Benfica, pelo que se vai vendo, parece não ser assim. Talvez se confunda o direito e a legitimidade a querer mudar, com a indispensável defesa de um objetivo comum. Ou seja: devia lutar-se, primeiro, perlo sucesso desportivo (é para isso que os clubes existem) e, depois, afirmar a eventual necessidade de operar mudanças estruturais.

Numa instituição democrática como é, desde sempre, o Benfica, é absolutamente legítimo que se defendam ideias diferentes, se argumente a favor deste ou daquele procedimento, forma de estar, transparência de processos, rigor de ações. Ninguém o deve questionar, sob pena de contrariar a democraticidade estrutural do clube, pôr em causa valores essenciais ou a nobreza da identidade coletiva.

O que parece menos compreensível é que se permita que esse estado de alma prejudique a estabilidade sem a qual nenhum projeto desportivo ganha perspetiva de sucesso. O problema não está, pois, na defesa das ideias; está no momento, no contexto, no interesse desportivo comum, na forma como se trabalha para o sucesso desportivo, e, portanto, para o objetivo conjuntural, para, depois, então sim, se poder trabalhar na parte estrutural e no seu desenvolvimento.
 

Ocaso do Benfica parece paradigmático pela facilidade com que alguns arriscam o tiro no pé a troco, objetivamente, de nada no imediato. Há divisão interna, parece evidente, de um lado da trincheira estão alguns dos homens eleitos, do outro o que resta da uma administração deixada pelo anterior presidente Luís Filipe Vieira. A ideia que fica é que estará, no meio, o atual líder da Luz, um presidente que na verdade parece estar, desde o início desta época, a fazer tudo o que pode para devolver ao Benfica o sucesso desportivo.

Rui Costa parece focado. Outros parecem desfocar-se, nesse sentido, com facilidade. Abrem-se brechas e as brechas, volto a sublinhar, são um perigo para a coesão, e sem coesão, arrisca-se a vitória.

Um exemplo: em janeiro de 2020, frustrado pelo insucesso na Taça da Liga, o treinador do FC Porto disparou para dentro, pôs o lugar à disposição, agitou as almas que pareciam desunidas e em conflito, clamou pela necessidade de se congregar todos os esforços. Chegou a ver-se a sete pontos do líder no campeonato. Sabem como acabou? Foi campeão nacional, aproveitando a contestação no Benfica a Bruno Lage.

O Sporting coeso, unido, fechado, do primeiro ano completo de Rúben Amorim em Alvalade, ainda por cima sem ruído nos estádios (sem público, afastado pela Covid) foi campeão. Quando a coesão começou a falhar, sobretudo a partir das divergências causadas pela transferência de Matheus Nunes, começou também a falhar a construção de novo sucesso. Parece exagero, mas é a minha opinião. Veja-se a quantidade de casos que ocorreram no Sporting após o título de 2021 e digam lá se acham que não têm nada que ver com o insucesso que o leão foi, entretanto, acumulando.
 

PODERÍAMOS, todos, creio, recorrer a inúmeros outros exemplos, mas não é preciso. O contexto, as circunstâncias, as atmosferas, a força emocional, a disciplina de processos e a defesa dos objetivos comuns, a química, a estabilidade, a segurança e confiança no trabalho de técnicos, especialistas e dirigentes, a ausência de ruído e a congregação de esforços são tudo fatores absolutamente essenciais para se vencer num meio onde se compete durante dez meses, entre muita gente diferente e sujeita a tanto fator impossível de controlar.

Se em cima disso ainda se deixa descontrolar o que é controlável, e se fratura o que depende exclusivamente da organização interna, então o sucesso torna-se miragem. O futebol costuma não perdoar os que começam por se derrotar fora do próprio campo.
 

VOLTANDO ainda ao caso do Benfica, o risco da evidente clivagem entre alguns dirigentes eleitos e estrutura profissional herdada de Filipe Vieira é a perda de estabilidade. Se quer manter-se como principal candidato ao título e continuar justamente a sonhar com a recuperação de um título de campeão nacional que lhe escapa há três anos, o Benfica só pode, na realidade, seguir o mote deixado pelo presidente Rui Costa no discurso da noite de gala pela celebração do aniversário do clube. Sem isso, com a turbulência já de si provocada pelos casos em tribunal, algumas acusações sem precedentes, violações do segredo de justiça e permanentes notícias sobre suspeitas várias (mais ou menos infundadas, mais ou menos ridículas, mais ou menos incompreensíveis, mais ou menos investigadas e nunca até hoje provadas), o Benfica bem pode acreditar que oito pontos de avanço na liderança do campeonato profissional de futebol poderão, afinal, ser menos confortáveis do que se julga.

O campeonato perdido de 2020 (ganho no cerrar dos dentes forçado pelo treinador portista) foi uma lição para o Benfica, como o perdido em 2019 tinha sido lição para o FC Porto (quando as águias venceram por se terem unido completamente em torno do improvável, desconhecido, mas benfiquista Bruno Lage). Nos dois casos, lá está, pela força da emoção, espírito comum e coesão. Não me parece que haja outro caminho. Pelo menos no futebol!