O eterno sorriso de Fehér

OPINIÃO27.01.202305:30

Fehér parece que foi hoje. Não porque o tempo passa muito depressa, mas precisamente porque deixou de passar...

HAVIA naquele absoluto silêncio o insuportável ruído do absurdo, o peso imenso das perguntas que não têm resposta. E havia naquelas centenas de pessoas, perfiladas no cemitério de Gyor, um olhar único, ao mesmo tempo belo, imensamente triste e perturbador, uma comovente capacidade de um abraço com os olhos. No fim do cortejo, Miklós Fehér. E não, naquele 28 de janeiro de 2004, o funeral de Fehér não foi a última viagem. O cemitério de Gyor não foi a última paragem, apenas uma estação de ligação a muitos outros destinos, porque Fehér seguiu viagem em todos os que ainda hoje não esquecem o último sorriso. O eterno sorriso.

Parece que foi hoje. Não porque o tempo passa muito depressa, mas precisamente porque deixa de passar quando há acontecimentos que marcam indelevelmente a vida das pessoas.

O regresso a Portugal não se deu sem antes sermos recebidos por Anikó e Miklós, os pais de Fehér. As paredes forradas com recortes de jornais e fotografias conferiam àquela sala um estatuto de museu. De Anikó nem consegui aproximar-me. Há no rosto de cada mãe que perde um filho a fusão violenta de todos os sentimentos humanos.

«Estou muito triste. Gostava do seu filho», disse, em português, ao pai Miklós. Acho o termo «condolências» demasiado frio para quem o recebe. Naquela hora nenhum pai quer receber condolências, quer ouvir palavras de encorajamento, quer que lhe digam que tudo vai ser melhor no futuro e que a dor, que pode até nunca passar, saberá coabitar com as doces recordações. Eu só queria que Miklós soubesse que eu estava triste, que gostava do filho dele e que, mesmo sendo incapaz de entender a dor dele, estava ali. Disponível para chorar com ele.

Miklós respondeu-me em húngaro. E durante alguns minutos conversámos. Sim conversámos. Eu não falava húngaro, ele não falava outra língua que não húngaro.  Mas sim, conversámos. E eu juro que entendi tudo o que ele disse. E posso jurar que ele entendeu tudo o que eu disse. Uma conversa reforçada com gestos, naturalmente, o maior dos quais um abraço apertado.

Dizem que o sorriso é a única língua universal. Permitam-me discordar. Não há língua que aproxime mais duas pessoas do que a capacidade de chorarem juntas. 

Amanhã é 28 de janeiro de 2023. Bom dia Fehér.