O desafio da transparência

Opinião O desafio da transparência

OPINIÃO19.08.202319:15

Nunca são fáceis os dias de quem escolheu o caminho da arbitragem. Em campo, em sala ou na estrutura, há sempre demasiados desafios a enfrentar, o maior dos quais assentará na enorme emocionalidade, para não dizer irracionalidade, que comanda corpo e alma da maioria dos adeptos. É terrível tentar pregar numa freguesia de ateus, onde cada palavra ou decisão jamais agradarão a gregos e troianos. 

Vem a constatação a propósito do que aconteceu no último Casa Pia -Sporting. Pela primeira vez desde que tomou posse há sete anos, o Conselho de Arbitragem (CA) fez a escolha de se pronunciar, no imediato, sobre uma ocorrência técnica de jogo: 

— Perante a evidência de erro comprovado tecnologicamente (por favor, não confundir com erro de interpretação em campo), teve a coragem de assumir publicamente uma falha humana.

Podia não o ter feito, escudando-se num silêncio que, já percebeu, não serve a classe; poderia ter camuflado a questão por outras vias; poderia até ter-se justificado de forma mais oficiosa e menos oficial, mas preferiu o caminho da transparência e da frontalidade. Fez bem, muito bem.

A verdade é que a equipa de vídeoarbitragem cometeu um erro de análise com relevância direta no resultado, quando tinha todas as condições operacionais para acertar. Esta é aliás a grande diferença em relação a outras avaliações erradas que ocorrem amiúde por esses relvados fora e que até aconteceram em Rio Maior também.

Esta posição do CA fez-me lembrar um momento insólito que aconteceu há uns anos na liga italiana, quando um árbitro exibiu um cartão amarelo a um jogador e assinalou pontapé-livre indireto contra a sua equipa, pelo facto dele ter levantado deliberadamente a bola dos pés para a cabeça, para poder atrasá-la ao seu guarda-redes (que por acaso não a tocou com as mãos).  A regra aí é clara e o gesto em si tem que ser sancionado da forma que foi. O problema é que quase ninguém sabia. Da execução do tal pontapé nasceu, claro está, o golo que determinou o resultado final. Se é para ter drama, que seja em grande. Ao perceber a controvérsia potencial que a decisão originaria e antes que o ruído se arrastasse por semanas a fio, o então Comité de Arbitragem pediu ao juiz que fosse à sala de conferência de imprensa esclarecer toda a questão. A opção inédita teve o mérito de esvaziar por completo tudo o que se antecipava: a esmagadora maioria das pessoas elogiou a atitude, a regra passou a ser clara para todos e a polémica enorme que estaria iminente morreu à nascença.

A questão aqui é exatamente a mesma: situações de exceção merecem medidas de exceção. Claro que as reações ao comunicado de sexta-feira dividem-se entre os que ficaram agradados com a iniciativa e os que logo apontaram dedo acusador ao CA, como quem diz: agora vou ver se fazem o mesmo em todos os jogos ou a semana passada não disseram nada quando este e aquele fizeram isto e aquilo. São as tais emoções a afetarem a clareza de raciocínio que aquele momento, que todos deviam entender como absolutamente excecional, merecia.

O reconhecimento de erro não é um processo fácil para ninguém, mas serve para distinguir o quilate moral de quem manda, em momento sensível. Não atenua a gravidade da situação nem pode ressarcir desportivamente quem foi lesado, mas mostra elevação e dignidade e isso é sempre elogiável.

O que toda a gente espera agora é que a opção seja idêntica em todas as situações onde lances desta natureza (repito, desta natureza) possam acontecer. 

Nota final para um mas que tem que ser aqui mencionado, por ser da mais elementar justiça para os profissionais que estiveram na Cidade do Futebol: 

—  Não foi boa, a opção de atirá-los para a fogueira imensa que é a duríssima opinião pública. 

Decisões deste calibre têm que ter consequências para quem erra, isso é óbvio, mas a necessidade de as enunciar publicamente com tudo muito a quente, vendeu para o exterior a ideia de que a estrutura se estava a demarcar da falha cometida. Que nada tinha a ver com o que aconteceu. Mas tinha. E tem. Em última instância, aquele erro também foi da sua responsabilidade, porque é a estrutura que credencia, prepara e nomeia árbitros e videoárbitros. Na arbitragem, o erro de um é sempre o erro de todos. Caímos todos, levantamo-nos todos. E quando é preciso punir um dos nossos, quando é necessário tomar decisões difíceis, devemos tomá-las primeiro dentro de casa e só depois, se for caso disso, cá fora.

Toda a gente perceberia que aquela dupla ficaria ausente das próximas nomeações, se fosse esse o castigo escolhido. Seria, como sempre foi, um raciocínio fácil de fazer. Essa seria uma gestão muito mais justa e eficaz do que a escolha em crucificá-los publicamente. Não sendo seguramente a intenção, soou a populismo.

Quando se lançam culpas assim, corre-se sempre o risco de se causar mais dano que benefício. Os dois profissionais que ali estavam já deram muitos anos da sua vida à arbitragem, com entrega total e desmesurada. Os dois homens que ali estavam também. Não é assim que se recupera a sua moral.

Quanto ao resto... chapeau. São novos tempos, estes que agora parece respirar a arbitragem portuguesa. Ainda bem.