O ‘circo’!

O ‘circo’!

OPINIÃO31.03.202306:30

O que vale é que não se devem confundir amizades com clubes

NO último fim de semana, quando já se aproximava o regresso da Liga - interrompida pelos dois compromissos da Seleção Nacional -, estava mesmo a ver-se que regressaria também a habitual criação de atmosferas controversas do lado de quem, há anos, nunca abandona o velho espírito das bolorentas guerrilhas e da contundente (e bafienta) cultura do ‘contra todo e contra todos’, do Norte contra o Sul, do maldito centralismo, do velho, preocupante, inqualificável, inquietante e surrealista ataque aos ‘mouros’.

A conveniência (hipócrita conveniência…) de um líder desportivo como é o presidente do FC Porto - com a tremenda responsabilidade que deve ter um líder desportivo como, há mais de 40 anos disto e daquilo, é o presidente do FC Porto - ficou bem clara no espaço de poucos dias, entre a apresentação de um livro de um «amigo benfiquista» e, alguns dias depois, o discurso à nação no «Dia do clube, a 40.ª Sinfonia», como lhe chamou o FC Porto.

Quis o presidente do FC Porto, sem a habitual ironia, valha-nos isso, exibir o melhor ar da sua graça samaritana, quando, no lançamento do tal livro do «amigo benfiquista« (no caso, o escritor Luís Osório), decidiu, na extraordinária, imponente, inestimável, impressionante e esmagadora Casa da Música, no Porto, dar aos jornalistas presentes uma espécie de ‘bonomia em rebuçado’ ao afirmar ter «muitos amigos benfiquistas» e «não confundir» (sublinho o «não confundir») «amizades com os clubes». «Não tem nada a ver uma coisa com outra».

Bastou, porém, a agitação interna de um ‘conflito’ criado a partir de declarações públicas do próprio  treinador e, depois, do próprio presidente do FC Porto, publicadas na generalidade da imprensa e faladas na generalidade dos meios audiovisuais, para o mesmo presidente do FC Porto presentear os jornalistas, desta vez, não com a exuberante bonomia, mas com a mais habitual ‘graçola’ e ‘ironia’, de os desafiar a ouvir um fado tocado na estação de rádio que ouvia no próprio carro, enquanto se deliciava, como aliás escrevi no dia seguinte, a ‘puxar dos galões’ da amizade (que ninguém, obviamente, discute ou questiona) com o treinador desde que o treinador - nas palavras do próprio presidente - tinha 16 anos e, agora recordo eu, acabava de assinar o primeiro contrato com os dragões.

A agitação, como sempre sucede com o clube portista sempre que convém, ‘evidentemente inventada’ pelos jornalistas, levou o presidente do clube, não a confundir os «amigos benfiquistas» com os clubes, mas a confundir, agora, algo, sim, suficientemente grave, adversários com… inimigos!

DEZ dias, mais coisa menos coisa, separaram, pois, as duas afirmações a que me refiro. Repare o leitor: foram dez dias, não dez e muitos menos cem anos dos largos dias que a autobiografia do presidente do FC Porto proclama em título.

No espaço de apenas dez, tão curioso como o presidente do FC Porto exibir o seu melhor ‘fato dirigente’ na apropriada e venerada Casa da Música, para deixar eloquente (e conveniente) mensagem de não se poder confundir «amizades com clubes, porque não tem nada a ver uma coisa com outra», para logo despir o ‘melhor fato de dirigente’ e assumir de novo a voz dessa inaceitável, grotesca, caricata, ridícula, até anedótica, para não lhe chamar o que, por vezes, apetece, realmente, chamar, ‘guerrilha’ com que construiu grande parte da liderança que lhe deu, na realidade, incomparável e inigualável sucesso desportivo.

«O nosso inimigo não está aqui, o nosso inimigo, não sei bem agora contar, mas está a uns 300 quilómetros», foi, dez dias depois do evento da Casa da Música, a afirmação do presidente do FC Porto, para tentar passar a esponja pelo evidente desconforto causado ao treinador da equipa campeã nacional por muitas coisas, ditas e feitas, que o treinador tem, pelos visto, vivido e suportado em todos estes cinco anos e meio que leva à frente do futebol dos dragões. Para o presidente do FC Porto, que não confunde «amizades com clubes», é sempre conveniente, e fácil, como se vê, confundir adversários com «inimigos» e dar o pior dos exemplos neste futebol português tão mal tratado em matéria de ética, transparência e coesão.

NÃO me leve o leitor a mal por repetir (sublinhando) o que deixei escrito neste jornal ainda na última quarta-feira, mas a verdade é que não resisto: acho, realmente, grotesco que o presidente de uma SAD desportiva (cotada em bolsa, escrutinada por reguladores e pelo próprio Estado) como é a SAD do FC Porto, com as responsabilidades da SAD do FC Porto, competidora, através da equipa principal de futebol, na Liga portuguesa (que tanta reclama evolução como indústria de espetáculo e tanto proclama centralização de direitos televisivos) possa publicamente fazer afirmações como a que fica, mais uma, descrita, e nada, rigorosamente nada, lhe suceda. O que o presidente do FC Porto disse não precisa de ser investigado, auditado, fiscalizado, tributado, julgado. O que presidente do FC Porto disse só precisa de ser ouvido. Nada mais. Se pode, simplesmente, dizer o que disse e confundir exercício de responsabilidade com ‘exercício de autoridade’, então devemos todos refletir que futebol queremos, afinal, deixar aos que nos seguem.

PODE o ‘poder do povo’, que o Estado, como representante popular, delega, pelo espírito, legítimo e desejável, do movimento associativo, na federação e, neste caso, Liga, como é o ‘poder do futebol’, sofrer, infelizmente, dos defeitos que não são mais do que os defeitos próprios do homem em comunidade (a corrupção, o tráfico de influências, o abuso de poder, os atos, mais ou menos individuais, de falsificação, fraude, branqueamento de capitais, enfim, a panóplia de crimes praticados na generalidade da nossa vida), mas tem de chegar o tempo em que deixará, pelo menos, de estar nas mãos (num exigível exercício de responsabilidade) de quem não tem qualquer problema em atropelar, no caso, o espírito do futebol em benefício da maniqueísta visão com que se ‘demonizam’ os adversários e se ‘santificam’ os valores (?) próprios.

TENHO igualmente mais de 40 anos, disto e daquilo, na vida de jornais e de acompanhar o futebol, no fundo, o jogo pelo qual nos apaixonámos, como ainda ontem escrevia Vítor Serpa no editorial deste jornal, essa «magia que atrai multidões», como se fosse, sublinhava, e bem, «aquilo que realmente é: a coisa mais importante das coisas menos importantes».

Ao cabo destas décadas, imaginava não testemunharmos já algumas das coisas de que continuamos, infelizmente, a ser testemunhas. É a minha vez, porém, de ‘mudar o chip’ e perder as ilusões. E, já agora, lembrar o que um dia disse o desaparecido árbitro Vítor Correia: «Desde que, no circo, vi um porco a andar de bicicleta já nada me surpreende».

O problema, hoje, já não está na surpresa. Nem no porco a andar na bicicleta. Está mesmo no circo. Mudou pouco.

ESTÁ o empresário César Boaventura a contas com a Justiça, esta semana formalmente acusado (mas ainda não julgado e muito menos condenado) de crimes de corrupção, segundo o ministério Público, «ativa e tentada». A Justiça terá, pois, de fazer o seu trabalho e César Boaventura, inocente até prova em contrário, de fazer a sua defesa.

Se vierem a provar-se os factos indicados pela investigação judicial, estaremos, naturalmente, perante  gravíssimo caso de corrupção desportiva, na linha de todos os que imaginamos terem sido cometidos em ‘dossiers pelicanos’ como o Apito Dourado.

Não posso deixar, porém, de estranhar que num dos casos associados à alegada prática suspeita de César Boaventura junto de jogadores de futebol (três antigos do Rio Ave e um antigo do Marítimo), o próprio Ministério Público admita, quanto ao último caso - o jogador Roman Salin, então no Marítimo - o agente de futebolistas César Boaventura apenas ter falado na possibilidade de um «contrato com um clube estrangeiro» para a época seguinte (estávamos em 2015/2016). Lê-se no despacho de acusação que a conversa não prosseguiu porque Salin recusou continuar a falar, afirmando a investigação, no mesmo despacho, que se ela, a conversa, tivesse continuado, e apenas se ela tivesse continuado, «seguir-se-ia o expectável aliciamento à prática de ato visando o falseamento da competição desportiva». A conversa não aconteceu. É apenas um facto.

Curioso, ainda, como o próprio Boaventura contou, na sua página no Facebook, ter recebido, à época das acusações, emails, por exemplo, do FC Porto, com mandatos para vender jogadores, enviados pelo então diretor -executivo dos dragões, Urgel Martins, um homem que apenas deixou o clube portista em 2021. Nada de mais. Mostra apenas, pelo menos, como Boaventura tinha, afinal, boas relações com muitos clubes. Como é normal com os agentes de jogadores. Apesar de haver quem gostasse de provar o contrário.