Não me agradeças já, João Félix
O seu futebol leva-o por caminhos divergentes dos demais, já poucos com perfil semelhante, mas pode ter no Villa uma casa em que se deve permitir, sobretudo, a ser feliz
Nunca entendi o fenómeno dos livros de autoajuda e das estantes inteiras que lhes são dedicadas em locais obrigatórios de passagem das livrarias. Será que quem os lê se tornou realmente milionário ou acontece apenas a quem os escreve e daí o real significado de autoajuda? Terá o mais entusiasmado dos leitores ultrapassado todos os obstáculos daí em diante?
Há autores que evoluem para oradores e espalham gritos de guerra em eventos, ou criam símbolos para onde se canalizam todo o tipo de frustrações em círculos mais fechados. Como uma luva branca para a bofetada exemplar. E, mesmo assim, Éder precisou que todas as estrelas se alinhassem para conseguir movimentar o braço, encaixar todos os agradecimentos que ainda lhe chegam e desaparecer rapidamente de campo. Não confundamos psicologia barata, entre 10 e 20 euros mais IVA, com verdadeira ciência, ainda assim longe de exata.
Parar, pensar, agir – talvez inspirado numa passagem de nível sem guarda. A montanha és tu! Porque é que ninguém me disse isto antes? Autocontrolo. Essa dor não é tua. Segredos da Mente Milionária. Ou o sempre emblemático, e pelo qual tenho um especial carinho, Não te f*das. Se houver um que reduza a fórmula indestrutível a dez pequenos passos talvez contem comigo. Estas brochuras de sabedoria talvez até façam sentido no verão. Podem ser travesseiros sobre as irregularidades da areia, lêem-se duas ou três páginas, vai-se ao banho, sentimo-nos revigorados e adormecemos com o calor. Acordamos ressacados, avançamos mais duas ou três páginas que embrulham e dizem o mesmo e de novo para a água.
Na verdade, mesmo que quisesse, nunca conseguiria escrever um livro que autoajudasse João Félix, que preenche mais uma vez manchetes por todo lado. Ora Barcelona, ora Villa, definitivamente não o Atlético. De nada adiantaria dizer-lhe que ele é a sua própria montanha e que a tem de escalar sozinho. E, mesmo que o conseguisse, duvido que tivesse o absoluto controlo das suas ações, como nenhum de nós tem, para evitar ouvir o tal Não te f*das.
Para mim, é claro. Félix jogaria sempre na minha equipa, mesmo que isso condicionasse os outros 10. E não quero saber do que o resto do mundo pensa e estrondosamente enumera, embora esteja a par de não ter sido bem-sucedido com técnicos, equipas e em ligas diferentes, do valor de mercado estar bem abaixo dos 120 milhões, de ter dito que se via a ganhar uma Bola de Ouro e da vida extrafutebol. Uma das melhores frases de um dos melhores no jogo, George Best, pelo menos faz-nos pensar quanto isso é irrelevante: «Em 1969, pus de lado o álcool e as mulheres. Foram os piores 20 minutos da minha vida!» Só me interessa o jogador. O excelente intérprete do espaço, um dos mais inteligentes a aproveitar entre linhas, aquele que assume o risco sem medo e pensa de forma ofensiva, sempre à procura do desequilíbrio. Infelizmente, já não restam muitos assim.
Escrevi-o antes. O futebol deixou de ter espaço para o 10. Tornou-o primeiro um seis-e-meio ou oito-e-meio ou até um falso extremo. Estes últimos, depois, cresceram até serem uma posição específica, e deixou de haver nem que fosse um minifúndio para jogadores como Félix. O português irá um dia talvez concluir que nasceu e viveu no tempo errado e nada há a fazer. Na América do Sul, Messi e James (e Neymar) são espécimes sobreviventes de um perfil em extinção graças à proteção dos restantes, e o campeão europeu Dani Olmo não é mais do que parente afastado de Maradona, Zico, Platini, Baggio, Laudrup e tantos outros. Tal como Odegaard ou De Bruyne.
Claro que o percurso poderia ter sido diferente. E, como nunca há só um culpado, João Félix não conseguiu camuflar debilidades sem bola ou sequer encontrar a cadência certa com esta no pés para que não o rotulassem de intermitente, logo por baixo dos três dígitos tatuados nas costas. Faltou-lhe essa inteligência emocional que pode ser parcialmente decorada dos livros, mas na realidade ou se tem ou não.
O seu futebol também não segue a corrente. Quer continuar a divertir-se como o miúdo que ainda é e que já não querem que seja num futebol sisudo, de rosto fechado e faca segura nos dentes. Há a sua forma de jogar, a sua maneira, a forma como quer triunfar, e tem esse direito. Direito ainda a que não o comparem a Ronaldo, só porque esse sacrificou, igualmente com toda a legitimidade, quase tudo para poder ganhar tudo.
Lembro-me de Ronaldinho. Não comparo talento, prémios ou títulos, mas recordo, com saudade, que sempre quis ser ele próprio, com aquele sorriso nos lábios. Talvez tenha sido, a par de Maradona, o mais talentoso que vi e, mesmo assim, não foi consensual no PSG e no Milan e, apesar dos melhores momentos terem sido criados pelo Barcelona, foi retirado de perto de Messi por Guardiola, que viu nele má influência. Encostaram-no muitas vezes à esquerda. E o futebol não lhe reconheceu totalmente a arte, com o seu apoio incondicional e mais títulos.
Não há obra ou crónica que João Félix possa ler e o ajude a ser o que quer ser num futebol mau anfitrião para certos convidados. Que é crítico e snob, e não permite que pensem diferente. O que a sociedade exige é que o português finja, se disfarce de algo que não é para que o considerem um dos seus, ignorando que nunca será debaixo de uma camisa de forças que cumprirá as expetativas levantadas no dia em que deixou a Luz. Já seria difícil mesmo com uma máquina do tempo que nos fizesse recuar até aos anos 80 e 90, de glória para outros como ele.
Ser querido por um bom técnico como Unai Emery, que também soube evoluir no modelo que apresenta, é bom sinal. Ser Monchi, alguém que se preocupa com os jogadores, o diretor desportivo outro. Depois, é preciso que tenha a certeza de que é o passo certo para ser feliz. Se for, lembra-te, João: a montanha és tu. Ou como diria o treinador certo: vai lá para dentro e diverte-te! Se o conseguires será a tua arte subtil de saber dizer que se f*da!