Não há regulamento que nos salve

OPINIÃO30.11.202106:00

Enquanto se apuram responsabilidades, alguns chegarão à universidade, outros vão casar, muitos terão filhos e esses filhos terão netos

H Á umas semanas, a propósito da fraca qualidade exibicional da Seleção Nacional, qualifiquei aqui o futebol português como uma improbabilidade estatística. Nesse dia referia-me à quantidade de talento que a prática competitiva desta modalidade tem sido capaz de produzir nas últimas décadas, para concluir com o sentimento de angústia por ver tanto talento desperdiçado. Esse talento manifesta-se quase exclusivamente no relvado ou nos bancos de treinadores, e cada vez mais fora de Portugal. Assim que olhamos para o resto da paisagem futebolística do país, o défice de talento torna-se significativamente maior. Défice de talento, bom senso, e respeito.
Estas palavras não são de um agente do futebol português ou coisa que o valha. São de um adepto que, por acaso e simpatia de quem o convidou, tem oportunidade de escrever num jornal. Não sou nem mais nem menos do que os outros adeptos. Sou alguém que compreende melhor o que se passou no sábado passado do ponto de vista de quem estava na bancada, do que a partir do lugar ocupado pelos restantes protagonistas. Sou, por isso, alguém que se sente destratado por todos os envolvidos neste episódio. Não vou dizer que é a morte do futebol português porque, para sorte do futebol português, os adeptos são demasiado apaixonados pelos seus clubes e demasiado irracionais para concluírem que o melhor mesmo é abandonar este futebol e emigrar para outra liga como fazem os jogadores.
Escrevi este texto quase à hora de fecho da edição porque aguardava um esclarecimento acerca do que se passou no Jamor. Tive direito não a um, mas a vários esclarecimentos que em nada coincidem. Cada um dos protagonistas tem a sua própria versão dos acontecimentos e todas as entidades que deveriam decidir acerca da realização do jogo de sábado já anunciaram a instauração de um inquérito, um processo disciplinar ou qualquer outra das figuras de estilo habitualmente utilizadas no futebol português sempre que acontece alguma coisa que não devia. Nunca sabemos exatamente o que se passou, nem que esteja à frente do nosso nariz, e há sempre quem garanta que tudo fará para esclarecer e punir os responsáveis. Enquanto se apuram responsabilidades, alguns de nós chegarão à universidade, outros vão casar, muitos terão filhos e esses filhos terão netos. Talvez descubramos finalmente vida em outros planetas ou uma forma de combater o envelhecimento para podermos assistir a mais episódios lamentáveis no futebol português. No final da história, a culpa morrerá solteira.
 

Não haverá culpados para o que aconteceu no Estádio Nacional, defende Vasco Mendonça, apenas vítimas


As razões para este triste fim - a culpa sem dono - são complexas e talvez mereçam outro inquérito ou processo disciplinar, quem sabe até um grupo de trabalho. É que no futebol português nunca há culpados, apenas vítimas. Este sábado a Liga foi vítima da falta de comunicação da B SAD, o presidente da B SAD foi vítima da falta de compreensão da Liga, e o Benfica foi vítima dos regulamentos que aparentemente fizeram dos atletas reféns e os obrigaram a jogar contra sete jogadores de campo e dois guarda-redes. Era impossível de evitar, pelos vistos. E ninguém sabe explicar exatamente porquê, a não ser transferindo as culpas. E foi assim que a mais absoluta falta de responsabilidade, bom senso ou competência, fizeram com que assistíssemos a um dos episódios mais embaraçosos dos últimos anos no futebol mundial. Mas atenção que podia ter sido pior. Imaginem que o dito regulamento que obriga à realização do jogo tinha sido aprovado pelos próprios protagonistas, ou imaginem que a pandemia andava por cá há tempo suficiente para todos sabermos o que fazer em relação a isso, imaginem que alguém pensava nas consequências de um possível surto desencadeado pela realização do jogo, ou imaginem até que a sensatez era uma faculdade alcançável por estas pessoas. Eu sei, parece difícil de imaginar. Felizmente os regulamentos não dizem para os atletas presentes em campo se atirarem da tribuna do Jamor cá para baixo, senão as consequências poderiam ter sido mais graves - ainda que tivéssemos o consolo de saber que os regulamentos teriam sido seguidos escrupulosamente.
O nosso futebol é de facto uma improbabilidade estatística - e tragicómica. Quando um jogo se realiza nestas circunstâncias, ninguém assume erros. Quando há violência ou racismo nos estádios, é impossível identificar os adeptos. Se insistirem muito, dir-se-á que nem sequer há racismo. Quando há erros clamorosos do VAR, responde-se com as decisões acertadas e rejeita-se qualquer mudança ou tentativa de melhoria que beneficie a modalidade e a sua relação com os adeptos. Quando se é acusado de cumplicidade com a atitude violenta das claques, aponta-se o dedo à claque do adversário e lava-se as mãos do assunto enquanto se continua a financiar as referidas claques. Se houver suspeição acerca do nosso clube, responde-se com a suspeição no clube do outro. Se alguém ganhar contra nós, é porque jogou sujo. Se alguém perder, é porque ganhámos limpo. No futebol português existe sempre uma boa desculpa para tudo, mas ainda não vi um pedido de desculpas ou a devolução do valor pago pelo bilhete aos adeptos que estiveram no Jamor, que lá foram por amor a tudo menos a estes protagonistas. Aqui chegados, é evidente quem são os culpados e as vítimas do nosso futebol. Infelizmente ainda não há um regulamento que nos livre disto.

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