Manuel Sérgio: José Maria Pedroto e eu
José Maria Pedroto num treino do FC Porto no Estádio das Antas. Foto A BOLA

Manuel Sérgio: José Maria Pedroto e eu

Professor universitário jubilado e filósofo, Manuel Sérgio escreve na Tribuna Livre, um espaço de opinião de A BOLA aberto ao exterior

A família

Numa tarde de maio de 1981, em congresso, no Hotel Solverde, organizado pelos Drs. Aníbal Silva e Costa, médico-cirurgião, diretor-geral de Apoio Médico (DGAM), e Lito de Almeida (o Dr. Lito era médico em Espinho), e empurrado pelo meu diretor-geral (eu trabalhava, então, na DGAM), aí estou eu, modesto aprendiz de filosofia, com a forte convicção que teria algo a dizer de fecundo para um congresso de medicina desportiva, oscilando entre o módulo da oração académica e o caráter mais espontâneo e mais vivo de simples conversa entre pessoas que se conhecem. Só que desta feita ainda abanei a charla com uma bojarda: «E, porque demasiado racionalista, mecanicista, cartesiano — o treino desportivo atual está errado!».

Findas as palavras que pronunciei, seguiu-se uma pausa para café. Tomando a dianteira a uma ou outra pessoa que desejavam comigo dialogar, José Maria Pedroto, dando a mão a uma bonita menina e olhando para ela com uma natural doçura: «É a minha Isabel! A minha filha! Frequenta o segundo ano da Faculdade de Medicina!». De repente, sem mais delongas, entendi, naquele momento (e entenderia melhor um pouco mais tarde) por que o José Maria Pedroto foi, no seu tempo, a expressão viva da consciência tecnocientífica (e até política) do futebol português, ou melhor, onde residia o radical fundante que o tornava capaz de compreender com rapidez, de julgar com autoridade, de decidir com segurança: principalmente, a sua família!

A Dra. Cecília Pedroto está, toda ela, nos êxitos do seu marido. De braços sempre abertos, para lhe oferecer alguma coisa de mais precioso do que todos os êxitos, o amor de uma mulher — a Dra. Cecília foi o suplemento de alma do trabalho desenvolvido pelo Sr. Pedroto, no futebol, de modo muito especial no FC Porto. Ele assim mo confessou, anos depois: «Sem a Cecília, não teria feito o que fiz». E ainda há quem julgue que, para saber de futebol, basta saber de metodologia do treino e de tática. Repito o que venho escrevendo, ano após ano: é o homem (ou mulher) que se é que triunfa no treinador (ou na treinadora) que se pode ser.

Bertold Brecht

Mas o Sr. Pedroto não me procurou (há 43 anos!) para me apresentar a sua menina. Ele, porque escutou a minha charla, queria questionar-me. E assim o fez: «Eu gostava que me explicasse por que o treino desportivo está errado». Naquele momento, atrapalhei-me, senti-me como examinando diante do examinador. Lá fora, uma tarde com toda a macieza e brandura da primavera e eu, ali, calado, sem saber o que dizer. Desapertei o casaco e o gesto deu-me o quantum satis de coragem para responder, de pronto: «Pelo que vejo, no Estádio do Restelo, com treinos em que os jogadores sobem e descem as escadarias das bancadas, com um colega às costas, há cargas físicas em demasia no treino». E continuei: «Até me parece um disparate».

E ele grave, sem rigidez: «Um disparate?». E eu, já sem hesitações: «Um pianista, quando prepara um concerto, toca piano. Se anda a correr à volta do piano, não está a preparar o concerto. Assim, no meu modesto entender, também o treino do jogador de futebol deve ser com bola, quero eu dizer: deve ser igual ao jogo». Acabei a minha dissertação de caloiro e nada dissera que o Sr. Pedroto já não soubesse e… há muito tempo! Mas ele, de expressão franca e aberta, antes de regressarmos aos nossos lugares, na plateia, adiantou: «Vamos continuar a nossa conversa de hoje?».

Passados dois ou três meses (eu lecionava no Instituto Superior da Maia e na Universidade Fernando Pessoa) encontrei-me com ele, no Porto, no café Velasquez. Acompanhou-me o professor João Mota, seu adjunto e… amigo fraterno, tanto dele como de mim (julgo não exagerar). E levei comigo um poema de Brecht:

«Nós vos pedimos com insistência

Nunca digam: isso é natural!

Diante dos acontecimentos de todos os dias,

Numa época em que reina a confusão,

Em que corre o sangue como um rio impetuoso,

Em que o arbitrário tem força de lei,

Em que a humanidade se desumaniza,

Nunca digam: isso é natural!

A fim de que nada passe por ser imutável»

Ele, simpático, perguntou-me: «O poema é bonito, mas por que o trouxe para o nosso encontro?». Aqui reduzi-me à consciência do meu ínfimo saber, no âmbito do treino desportivo: «Meu querido amigo, que sei eu de treino que lhe interesse? Nada! Assim, pergunto-lhe: tem a consciência que o desporto, em que trabalha, é a expressão corporal de uma determinada ideologia?». Imperturbável, com o inesperado, da interrogação, sorriu e disse-me: «Embora as pessoas que me rodeiam não deem por isso, eu também sei que no futebol há mais do que futebol». E continuou, com risonha bonomia: «Quer mais ideologia do que neste ditado: Portugal é Lisboa e o resto é conversa?». E deu ênfase ao que dissera. «E o pior é que as pessoas acreditam no que dizem».

O discurso ideológico

Aproveitei o ensejo para lembrar: «A ideologia dominante é a ideologia da classe dominante». E acrescentei ainda: «Se descodificarmos estes ditados: ‘em boca fechada, não entra mosca’, ‘a quem nada deseja, nada falta’, ‘a mulher é a fada do lar’ e ‘Portugal é Lisboa e o resto é conversa’ — há, ou não há, aqui, a vontade de manter inalterável a sociedade em que se vive, apresentada como estável, estática e harmónica, sem antagonismos de qualquer espécie?».

Pedroto era um homem de inteligência penetrante e pareceu-me emocionado quando voltou a tomar a palavra: «Sou cristão (‘e eu também’, atalhei de pronto) mas, pode crer, não deixo de fazer minhas as suas palavras». Digo já, em abono da justiça, que quando ele ingressou no FC Porto, logo o percecionei como um profissional capaz de um corte epistemológico (e não só epistemológico) na equipa do seu coração que, quando jogava em Lisboa, chegava a Gaia e (dizia ele, com graça) «já está a perder um a zero!». E revelava o que pretendia fazer: «O que a rapaziada do Porto mais precisa é de treino mental. Treino físico não lhe falta.» E, de mão espalmada no peito, afirmava: «O que esta rapaziada precisa é da convicção, da convicção inabalável, de que, se quiser, pode ser igual aos jogadores do Benfica e do Sporting.» E rematou, terminante: «E vamos fazer isso, com toda a certeza.»

E, enquanto bebia um café: «O que se passa atualmente, no futebol portista, é fraqueza, é demissão, chega a ser aviltamento. Conhece o Jorge Nuno Pinto da Costa?» E continuou, sem ouvir a minha resposta: «Com este homem como presidente, o FC Porto pode ser o primeiro dos grandes.» E ele, decerto, ainda ouviu o que eu lhe segredei: «Com o meu amigo ao lado dele.» Guardo na lembrança a sua resposta: «E ele também diz isso».

Afinal, logo poucos meses depois, Pinto da Costa e Pedroto escreveram, fazendo equipa, algumas das páginas mais sugestivas, digo-o eu, no meu estilo nervoso e correntio, da história do futebol português! Timbrando honrar a memória de Pedroto, o Prof. José Neto, seu adjunto e, hoje, um especialista na vasta problemática do treino desportivo, não tem dúvidas em adiantar: «No meu entender foi um treinador genial».

De facto, José Maria Pedroto já sabia, há 50 anos, que o futebol é mais do que futebol. Entretanto, em 1982, ingressava no Benfica Sven-Goran Eriksson e os meus queridos Jorge Jesus e José Mourinho ainda não começavam a escrever o que os distingue, hoje, como treinadores de futebol. Mas de Jorge Jesus e José Mourinho poderei ocupar-me nos dois próximos artigos.