Há Benfica a menos e Jorge Jesus a mais
É difícil perceber o que pensa Rui Costa acerca desta situação, porque as suas palavras sobre este tema são inexistentes
Aépoca festiva obriga-me a dizer que há coisas mais importantes do que o futebol, e a família é seguramente a mais importante de todas, mas não andarei longe da verdade se disser que os benfiquistas, mesmo rodeados dos seus, tiveram um Natal mais triste do que desejavam. Apesar de tudo, a esperança impera quase sempre antes de um jogo importante. Mas não nos podemos dizer surpreendidos, não depois do espetáculo lamentável a que fomos sujeitos nos dias que antecederam o jogo, com o nosso treinador a negociar a sua saída do clube em páginas de jornais e oráculos de canais televisivos.
O resultado foi aquele que a análise das probabilidades sugeria. A qualidade exibicional foi exatamente a esperada tendo em conta a fragilidade que a equipa tem demonstrado nos jogos mais importantes. A falta de atitude demonstrada não andou longe da que infelizmente se tem visto demasiadas vezes em jogos destes. Esperamos sempre que seja diferente, mas talvez menos quando a convocatória para o jogo sai ao mesmo tempo que o último recado do treinador para os dirigentes do Flamengo. Quanto à capacidade da equipa técnica para contrariar tudo o que acabei de dizer durante os 90 minutos, foi absolutamente nula, até mesmo contra 10 jogadores. Mais uma vez faltou futebol, faltou combatividade, faltou a indignação e a gana dos que torcem cá fora. É aqui que estamos. Há Benfica a menos e Jorge Jesus a mais.
Rui Costa, à data vice-presidente (e administrador da SAD), e Jorge Jesus, na apresentação do técnico, a 3 de agosto de 2020, no Seixal
Passaram-se alguns dias, quase todos de folga para o plantel, e o Benfica continua a preparar jogos de futebol alegremente enquanto o nome da instituição é envolvido no formidável reality show que é a carreira do treinador da equipa principal. Devo dizer neste momento que nada disto me parece injusto para com Jorge Jesus. As minhas razões são simples. Há muito que Jorge Jesus poderia ter colocado um ponto final nesta situação. Não o fez porque não quer. Depois de ter estado com dirigentes do Flamengo na véspera de um jogo a eliminar contra o Futebol Clube do Porto, depois de ter enviado múltiplos recados para jornalistas dando conta dos avanços e recuos de uma negociação à vista de cada vez mais gente mas absurdamente negada pela própria comunicação do Benfica (!), depois de fazer saber pelos jornais que não sai do Benfica enquanto não lhe pagarem aquilo a que tem direito, e, finalmente, no mesmo domingo em que fez saber que tinha falado com Rui Costa e se encontrava comprometido com os objetivos da época, o mesmo Jorge Jesus, não satisfeito, fez questão de reagir à contratação de Paulo Sousa pelo Flamengo. Segundo a imprensa brasileira, disse a amigos que o Flamengo poderia ter esperado mais tempo por ele.
Pergunto eu, como muitos outros benfiquistas: e o Benfica no meio disto tudo? Até quando se vai deixar o treinador fazer o que quer, plantando notícias e emissários onde lhe convém? Até quando se vai manter esta situação em nome de uma suposta estabilidade, quando estabilidade é coisa que há muito não temos? É difícil perceber o que pensa Rui Costa acerca desta situação, porque as suas palavras sobre este tema são inexistentes. Mas que não se convença que isso contribui para a estabilidade ou para fazer respeitar o Benfica. Seja qual for o critério de análise - desportivo ou institucional - Jorge Jesus não devia treinar o Benfica no próximo jogo.
Nestas fases torna-se importante procurar Benfica para lá dos desaires. Esta semana encontrei-o no Equador, onde Renato Paiva acaba de se sagrar campeão. A entrevista que deu a outro diário nacional apanha o antigo treinador da equipa B do Benfica dias depois de ter conquistado o primeiro título nacional do Independiente, disponível para conversar sobre essa conquista e muito mais, incluindo a sua passagem pelo Benfica e tudo aquilo que não teve oportunidade de viver. A entrevista podia muito bem ser um repositório de frustrações - Renato Paiva viu-lhe ser negada a possibilidade de treinar a equipa principal antes da chegada de Jesus.
Felizmente revela tudo menos isso, confirmando mais uma vez a boa impressão deixada antes de emigrar.
Há muito que Renato Paiva é um dos mais interessantes treinadores portugueses: pelas ideias atrativas que preconiza no jogo das suas equipas, pela capacidade de as explicar, pela competência que tem evidenciado, pela civilidade que sempre demonstrou, e pela defesa intransigente do projeto de formação do Benfica. Renato Paiva não esconde a importância do seu clube do coração, nem tão pouco nega que gostaria de treinar a equipa principal. Pensa no entanto que aos 51 anos, talvez seja demasiado velho ou menos apelativo num país em que as convenções continuam a ditar escolhas aparentemente mais óbvias mas poucas vezes bem sucedidas.
Numa altura em que tanto se discute o perfil do futuro treinador do Benfica, talvez fosse avisado olhar para a formação, neste caso não a dos jogadores, mas dos treinadores. Já perdemos Rúben Amorim porque não quisemos investir devidamente no seu talento. Entretanto vimo-lo sagrar-se campeão dentro e fora de campo, demonstrando muito daquilo que melhor define o Benfica, infelizmente com as cores de um clube que não o dele. Será que queremos arriscar perder mais um?
O projeto desportivo do Benfica não pede fogo de artifício e muito menos pede lideranças que se comportam como se fossem superiores à instituição. Pede uma ideia de jogo e um onze assentes naquilo que o clube sabe fazer melhor: formar muitos dos maiores talentos do futebol mundial e combiná-los com alguma experiência internacional. Pede uma explicação clara desse projeto, que os adeptos consigam compreender e por isso apoiar. Pede a capacidade de traduzir isto não apenas em qualidade de jogo e bons resultados, mas também numa atitude patenteada em cada momento do jogo. Pede que não se tenha medo de optar por um caminho diferente do labirinto dos últimos anos, por onde se acelerou sem saber exatamente para onde se queria ir, colocando o balancete em primeiro lugar. E pede novos intérpretes, sem qualquer dúvida, com a certeza, porém, de que não basta trazer alguém como Renato Paiva e esperar que isso resolva tudo. As mudanças terão que ser mais profundas para que, juntos, consigamos escrever uma nova página na extraordinária história do Sport Lisboa e Benfica. É tempo de voltar a esse desígnio.