Gostava de morrer como Eriksson
Eriksson regressou ao Estádio da Luz (DR)

OPINIÃO Gostava de morrer como Eriksson

OPINIÃO29.08.202411:00

Os últimos meses de vida de Sven-Goran Eriksson foram de uma dignidade notável. Quando chegar a minha hora, gostaria também de responder: «estou pronto». Com um flute de champanhe na mão.

Se José Saramago ainda estivesse entre nós haveria de ter escrito: «Eriksson vive». Isto porque, na visão no Nobel da Literatura, «morrer não é o contrário de viver.» E explica: «Morrer é o contrário de nascer, o contrário de viver é esquecer». Por isso, há mortos que continuam a viver e há vivos que estão esquecidos. E se o também genial escritor moçambicano Mia Couto partilhar desta visão de Saramago, talvez escrevesse, na sua forma genial de fundir palavras para criar novas palavras, que «Eriksson desnasceu…»

Os últimos oito meses de vida de Eriksson, desde o dia em que anunciou ao mundo que iria morrer com cancro no pâncreas até ao último suspiro, foram de uma dignidade absolutamente notável e incomum. Um homem que ao encarar a morte decidiu olhar a vida nos olhos com absoluta serenidade. Que encarou o destino sem abrir mão de dizer a última palavra. De todos se foi despedindo, em homenagens sentidas e emocionantes, a todos foi dando exemplos de que a dignidade emana das nossas decisões e não das circunstâncias.

Quando às vezes falamos entre nós sobre a morte, todos pedimos que seja rápida, indolor, de preferência sem darmos por isso, num sono que livre do sofrimento. Talvez muito marcado pelo dia em que, sem qualquer aviso, perdi o meu pai, quando ele tinha apenas 48 anos, preferia para mim ser avisado com antecedência. Se o meu pai tivesse sido avisado, teria tempo para lhe dizer o que não cheguei a dizer. E ao desejar isso para mim, nem percebo que o verdadeiro problema não está na existência ou não de um aviso da morte, mas no assumir que se preciso de tempo para me preparar para a morte é porque não tenho estado a viver em plenitude e continuo a adiar dizer e viver o que é urgente ser dito e ser vivido. A vida plena é ser surpreendido pela morte e poder dizer «estou pronto».

Há pessoas cuja vida se pode resumir numa lápide: data de nascimento e data de morte. São, voltando a Saramago, as esquecidas desde o dia em que nasceram. Eriksson teve uma vida tão preenchida que pôde exclamar, horas antes do último suspiro: «Vivi». E não existe maior consolo do que esse, garantia de que apenas desnascemos. Mas continuamos a viver.

Eriksson disse que gostava de ser lembrado como «um homem bom». Por isso, quando procuramos elencar as nossas prioridades, quando tentamos até encontrar-nos, um bom ponto de partida é responder à mesma pergunta: como gostaríamos de ser lembrados após a nossa morte? Refletirmos sobre a resposta que daríamos ajuda-nos a saber quem somos, onde estamos, para onde devemos ir e quais as nossas verdadeiras prioridades.

Para explicar o que penso de Eriksson recuo ao final da época de 2007/08. O sueco comandou a equipa do Man. City numa digressão pela Ásia. O ambiente estava pesado e, depois de um final de época atribulado, todos perceberam que Eriksson iria ser despedido após o regresso a Inglaterra. Nessa digressão, Eriksson apareceu no hall do hotel irrepreensivelmente vestido de robe e chinelos. Transportava uma bandeja com uma garrafa de champanhe e um flute. Quando o jogador alemão Dietmar Hamann lhe perguntou o que tinha para celebrar alguém que iria ser despedido, Eriksson respondeu com um sorriso e um piscar de olhos: «A vida, kaizer… A vida…»

P.S. - Este artigo foi escrito em casa, com um flute de champanhe a meu lado. Um brinde.

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