Filho da mãe
A minha carreira na arbitragem durou apenas 50 minutos, os mais longos da minha vida! A hostilidade é tão grande que nem os bandidos aguentam ser árbitros…
Lembro-me perfeitamente do dia 28 de outubro de 1989. Estava no 2.º ano de Direito e inscrevi uma equipa num torneio universitário de futebol de cinco. O capitão de cada equipa tinha também de arbitrar alguns dos jogos. O meu primeiro e último jogo como árbitro: Napolitólica-Halterocopistas, 25 minutos cada parte, os 50 minutos mais longos da minha vida! Insultos, gritos, um penálti que quase me valeu uma agressão e duas resoluções: nunca haveria de ser árbitro; nunca mais insultaria um árbitro.
Bato palmas a qualquer pessoa que seja capaz de superar os meus 50 minutos de arbitragem. Alguém que aguenta fazer uma carreira a ter de conviver com insultos, pressões, agressões, mensagens ameaçadoras ou vandalismo. No campo ou a passear na rua. O único ponto positivo deste clima é que nem bandido aguenta. Acredito mesmo que a esmagadora maioria dos árbitros são sérios. Haverá maluco que, a troco de uns milhares de euros, abra mão da sua segurança e sanidade mental? Sobra a única razão para alguém aceitar lidar com tudo isto: gostar mesmo muito.
À medida que crescia a contestação aos árbitros, dois erros foram cometidos: a FIFA, na intenção de os proteger, tratou de os manter numa redoma, com proibição de falar; os próprios árbitros, como instinto de autodefesa, tornaram-se corporativos, assumiram laivos de arrogância, erigiram muros à sua volta. E a comunicação, ou ausência dela, tem sido um desastre.
Já consegui o pleno nos insultos
Falo por experiência. Só há um tipo de jornalista que nunca foi pressionado, ameaçado, insultado ou agredido: o que nunca escreveu ou disse nada de minimamente relevante. Por isso, já tive a minha conta. Cheguei até a ser insultado por adeptos de Sporting, Benfica e FC Porto pelo que disse num único, repito, num único programa de A BOLA TV. O sportinguista acusou-me de ser «lampião» da pior espécie; o portista de ser «lagartão» e «vomitar ódio ao Porto»; o benfiquista de me «vendido aos bandidos do Porto». Citei.
Juro, dou-me ao trabalho de responder a todos os que me mandam mensagem. Positivas – a grande maioria, felizmente – ou negativas. E, neste segundo caso, basta a resposta, educada, a explicar racionalmente o meu ponto de vista, para fazer baixar a agressividade em 90 por cento. E em todos os casos, repito, todos, foi possível chegar a uma base de cordialidade na troca de emails. Eu sou o Jorge, filho da Ana e do Amadeu, neto da Rosa e do Adelino, da Angelina e do José. E sou pai. Quem me escreve também é filho, neto e pai. Eu sou frágil, tenho dúvidas, erro e sofro. Quem me escreve também. Quando explicamos e assumimos as decisões e nos revelamos humanos, em especial na vulnerabilidade, a desconfiança e agressividade baixam drasticamente. Em todas as profissões. Por isso, os árbitros deveriam poder falar, explicar as decisões, até assumir o erro. Deviam poder ser humanos.
Adorei ler a entrevista de Artur Soares Dias a A BOLA. A primeira após a despedida da arbitragem. Gostei de ler e ouvir o que me contou dele. O agora ex-árbitro vai continuar a ser filho da mãe. Mas, ao contrário do que acontecia em campo, desta vez a mãe tem um nome, um rosto, uma história, valores. Filho da mãe e do pai. E ele próprio pai. E um grande árbitro, a quem agradeço o serviço que prestou ao futebol. Também errou? Mas quem sou eu para atirar a primeira pedra? Só aguentei 50 minutos, lembram?