Dinheiro inteligente
Aquilo que John Textor propõe é um Benfica do tamanho que nós benfiquistas vemos. São ideias que merecem ser ouvidas
Édifícil. Este fim de semana assisti a uns minutos do Newcastle-Tottenham e tropecei numa imagem de uns adeptos da casa com um pano árabe na cabeça. Celebravam a preceito a recente aquisição do clube pelo príncipe herdeiro da Arábia Saudita Mohammed bin Salman. A minha reação imediata foi achar aquilo tudo vagamente ridículo e passar a torcer pelos Spurs a partir desse instante. A vitória acabaria por sorrir à equipa treinada por Nuno Espírito Santo, não sem que antes eu me lembrasse que estava agora a apoiar, ainda que circunstancialmente, um dos clubes que participaram no brilhante projeto da Superliga Europeia. Cheguei ao fim do jogo indiferente ao resultado final e resignado: com a emoção do jogo, muito superior à esmagadora maioria dos jogos jogados em Portugal, e com a incontornável certeza de que é o dinheiro que manda nisto tudo.
Não vi os tais adeptos do Newcastle no final do jogo, mas imagino que continuassem de felicidade estampada no rosto apesar do 19.º lugar que a sua equipa ocupa ao fim de 8 jornadas. Eles sabem tão bem quanto os adeptos dos seus 19 adversários na Premier League que Janeiro está a poucas semanas de distância e que o novo proprietário quererá apetrechar a equipa de novos reforços para evitar cenários extremos. Portanto os adeptos só têm que esperar e fazer as suas conjecturas como quem joga Football Manager: a questão deixou de ser quem pode o Newcastle comprar. Junte-se o dinheiro ao amor genuíno do adepto pelo seu clube e neste momento a dúvida é outra: haverá algum jogador que não aceite jogar no Newcastle, um clube detido por alguém com uma fortuna 14 vezes superior à do proprietário do Manchester City?
Esta é a força bruta do dinheiro no futebol. Convoca as emoções do adepto e intersecta-se com o seu lado mais racional, fazendo de cada um de nós um repentino analista financeiro, cheio de certezas sobre uma folha de cálculo que é afinal um boletim do totobola. A sabedoria coletiva tenderá a considerar que a principal coisa que falta a um clube menos abastado é dinheiro, mas os últimos anos têm demonstrado o contrário. Clube após clube, temos visto os seus proprietários surgirem de rompante com um livro de cheques e um modelo de negócio infalível, e saírem de fininho quase sempre sem as dívidas e sem projeto desportivo. Os adeptos, infelizmente, acompanham a trajetória. Como dizia Valdano há uns dias, «ninguém nasce neoliberal, até ficar bem na vida». O pior vem depois, quando o dinheiro e a dignidade se acabam. É por isso que o dinheiro por si só, no futebol como na vida, não resolve absolutamente nada se não tiver um quociente de inteligência elevado.
O dinheiro inteligente é muito mais difícil de encontrar, mas é desse tipo de capital que os clubes de futebol precisam, se querem aspirar a feitos maiores ou, no caso do meu, se quiserem aspirar a feitos em 2021 que sejam equiparáveis à nossa grandeza. Parece-me hoje evidente que um clube como o Benfica, que pertence aos sócios e assim deve continuar - contra todas as investidas, por muito apetecíveis que sejam -, só terá capacidade financeira para redimensionar decisivamente o seu projeto desportivo se a) continuar a saber valorizar e transacionar os seus principais ativos (jogadores), b) tiver capacidade de garantir mais financiamento fora dos circuitos a que os clubes sempre recorreram, e c) souber incrementar e diversificar a sua receita. Este último ponto é fundamental se quisermos transitar de um modelo cronicamente vendedor para um modelo tendencialmente vendedor. A diferença é enorme. Imaginem um Benfica em que os tais ativos - vulgo ídolos - passam mais tempo no clube que os viu nascer e cumprem um desígnio para lá da folha de cálculo imaculada, cujas virtudes nunca encheram o Marquês de Pombal.
Vem isto a propósito do senhor John Textor, que será recebido esta semana em Lisboa por Rui Costa, poucos dias depois de ter criticado a compra do Newcastle por «um tirano» e ter celebrado o Benfica como «um clube do povo». Se é verdade que a sua entrada em cena justificou o maior cepticismo, também é um facto que o Benfica precisa de estar disposto a escutar no que a estes temas diz respeito. Agora que a poeira assentou, parece-me interessante ler ou reler um comunicado do senhor Textor publicado no seu site oficial a 15 de Julho, oito dias depois da detenção de Luís Filipe Vieira. O momento não podia ser mais inoportuno e por isso houve muito mais folclore mediático do que substância em torno do que se disse naqueles dias. Pouco ou nada se falou sobre as ideias elencadas por Textor, que pode até ser um charlatão ou alguém incapaz de concretizar aquilo que promete, mas teve o mérito de dizer coisas que podem ser no mínimo ser discutidas - até à margem de Textor - ou que deveriam fazer parte da estratégia de crescimento do Benfica, dentro e fora de campo, em Portugal e no resto do mundo:
- Uma capitalização do clube em outro mercado bolsista: não porque se daria exatamente nos termos descritos por Textor, mas porque importaria perceber melhor de que modo essa operação poderia acontecer;
- Uma implantação mais conseguida de academias do Benfica em mercados que são hoje dos mais prolíficos na criação de talento;
- Uma negociação mais ambiciosa da distribuição dos conteúdos da Benfica TV em outras geografias (ainda que a matéria-prima deste conteúdo - o jogo jogado - careça de melhorias);
- A valorização da marca Benfica por via da tecnologia, que permite valorizar o negócio para lá do palco desportivo, como demonstram diversas tendências da economia de conteúdos digitais;
- A enorme importância da audiência potencial do Benfica, que é uma das maiores do mundo;
Textor quer entrar no capital social da SAD do Benfica e tem acordo com José António dos Santos para a compra de 25 por cento das ações
Nada disto implica um Benfica descaracterizado ou desempossado dos seus valores fundamentais. Nada disto implica um Benfica de emblema travestido ou adeptos sem identidade. Nada disto pode implicar que o clube deixe de ser dos sócios. E há exemplos que demonstram ser possível. O modelo do Bayern, clube que derrotaremos na Liga dos Campeões daqui a pouco mais de 24 horas, é uma inspiração por todos os motivos, mas não deve ser visto como inatingível. O facto é que o mundo do futebol mudou e continuará a mudar. A centralização dos direitos televisivos é uma nota de pé de página na história que está prestes a ser escrita. Os desafios são gigantescos. Não podemos continuar a rejeitar dogmaticamente o dinheiro, num mundo onde o dinheiro é tão importante, sem primeiro conhecermos o seu valor.
As ideias de Textor sugerem um clube com mais mundo. Um clube do mundo. Um clube para o mundo. Sim, com muito negócio à mistura, mas estou em crer que só a conciliação dessa dimensão com a nossa carolice de adeptos permitirá chegar mais longe. Em suma, aquilo que John Textor propõe, pelo menos na sua ambição, é um Benfica do tamanho que nós benfiquistas tantas vezes vemos. Não digo isto por achar que o senhor Textor é a solução para todos os nossos problemas. Não sei até que ponto será ele o detentor do tal dinheiro inteligente que dá título a esta crónica. E sei bem do encantamento suscitado por alguém que apela à ideia que temos de nós mesmos. Se alguém nos diz que o Benfica pode ser tudo o que quiser porque é um dos maiores do mundo, isso poderá ser um elogio genuíno ou um engodo. Mas parece-me que são ideias que merecem ser ouvidas. A partir daí, resta confiar na capacidade da Direção e da SAD para avaliarem a inteligência do dinheiro e perceberem se é Textor ou se será outro investidor a fazer parte do nosso futuro. O que me parece difícil é querer que tudo melhore no Benfica sem que nada na sua estrutura financeira mude. Por outro lado, a SAD do Benfica e a sua equipa de profissionais nas mais diversas áreas, a quem reconheço muita competência, não aparentam estar devidamente equipados para encarar todos os desafios elencados por Textor. Digo isto porque seria de esperar que muitos dos temas identificados por Textor tivessem sido mais aprofundados nos últimos anos, e não me parece que assim tenha sido. Seria inteligente olhar para tudo isto e, com zelo, mas também com ambição, catapultar o Benfica para uma nova fase da sua história.