Cenas da vida conjugal

OPINIÃO14.12.202106:00

O futebol a triplicar que prometeu e não entregou ensombra a passagem pelo Benfica, por muitos objetivos que a realidade dê como atingidos

N ÃO espero que todos os benfiquistas se revejam no sentimento deste texto, mas este sentimento é inescapável. Há um misto de ânimo e angústia que se apodera de mim enquanto vejo os jogos mais recentes. Não sei se é stress pós-                                - traumático causado por mais um jogo paupérrimo frente a um adversário direto, ou se é apenas cansaço perante uma ideia de jogo meio desusada. Não me interpretem mal. Quero muito acreditar que o pior desta época já passou e que em breve serei obrigado a fazer uma qualquer pirueta intelectual para admitir que afinal Jesus tinha razão: que conquistou novamente o direito à sua postura de superioridade meio destravada, que foram as suas decisões - por muito que me custe - que fizeram o Benfica virar os resultados adversos e caminhar rumo ao título, ou que aquele onze sem jogadores da formação com que selámos a conquista do 38.º título é profundamente desinspirador, mas pelo menos somos novamente campeões, por-isso-que-se-lixe-o-resto, pelo menos até o Benfica e Jorge Jesus prosseguirem com as suas respetivas vidas. No fundo quero que aconteça futebol.
 O problema é que, quando olho para o calendário deste mês, para os dos meses seguintes, e para lacunas exibidas pela equipa mesmo em vitórias indiscutíveis, parece-me que os desafios pela frente serão ainda um valente cabo das tormentas. Há poucos dias Domingos Soares de Oliveira dizia, em resposta a um jornalista, e com a razão formal do seu lado, que o futebol profissional do Benfica atingiu até agora todos os objetivos que poderia atingir. No essencial, a resposta refere-se à qualificação do Benfica para a fase de grupos da Champions League e o subsequente apuramento para os oitavos de final. Mas, se é certo que nunca verão um adepto lamentar a qualificação do seu clube para a fase seguinte de uma prova europeia, também não é menos invulgar que a vitória frente ao Dínamo Kiev tenha sido coroada com tantos lenços brancos. É verdade que ganhámos ao Dínamo Kiev com a eficácia suficiente, mas sem grande magia. O Benfica atingiu todos os objetivos que a folha de cálculo da SAD dita como fundamentais, mas falta coração. A inconsistência da equipa traduz-se num amor intermitente dos adeptos, que ora se entusiasmam ora se indignam. Se forem como eu, já não sabem bem no que acreditar.
 

Jorge Jesus continua a ser muito contestado pelos adeptos e tem até ao fim do ano dois verdadeiros testes (ambos no Dragão) à sua continuidade no Benfica


Nisto, há uma vitória contundente frente a um Famalicão em fase de enorme fragilidade, exposta de modo assassino por um Darwin em noite formidável. Há um sorteio de Champions amigável, a prometer uma eliminatória empolgante frente a um dos clubes mais interessantes do mundo. E há, espera-se, um presente de Natal na chuteirinha sob a forma de uma eliminação do Futebol Clube do Porto, seguida, espera-se, de nova vitória sobre o Futebol Clube do Porto. Há um mundo de possibilidades moderadamente épicas diante de nós. Mas, sendo assim, porque é que adeptos como eu sentem que são hoje obrigados a dividir casa com um cônjuge a quem já mal dirigem a palavra? Perdoem-me aqueles que acharem a comparação infeliz, mas é por aqui que ando, desencantado com a identidade deste Benfica, que teima em não se afirmar decisivamente. Sei que o próprio Jorge Jesus não levará a mal as minhas palavras. O próprio já fez questão de dizer que a vida de treinador é mesmo esta, uns dias na mó de cima, outros dias à mercê dos humores do adepto. Mas talvez nunca como hoje se tenha sentido tão refém da sua própria promessa. O futebol a triplicar que nos prometeu e não entregou continua a ensombrar esta passagem pelo Benfica, por muitos objetivos que a realidade dê como atingidos. Jorge Jesus chegou ao Benfica como o treinador de Vieira. Parecia ter muito para voltar a dar certo. Não interessa agora se foi usado como um trunfo eleitoral, ou se era a melhor escolha possível naquele momento. Interessam os quase dois anos passados, que parecem muitos mais. Hoje, sem entregar o futebol a que nos habituou, e que nos prometeu, sem o apadrinhamento de Vieira, sem a confiança dos adeptos, vinculado a uma parceria aparentemente fria com Rui Costa, Jorge Jesus é o treinador exatamente de quem?
 Vida de cônjuges de costas voltadas, a quanto obrigas por amor à causa maior. Por enquanto dividimos a casa, nós os adeptos e Jorge Jesus, pelo bem dos nossos filhos (os jogadores), até eles irem para a universidade, que neste paralelismo algo tonto mas adequado acontecerá lá para junho, isto se tudo correr de feição, ou então já este mês, se Jesus não souber comandar os jogadores a duas vitórias frente ao Futebol Clube de Porto. Sim, porque, se essa seria sempre a exigência nestes dois jogos, é também impossível esperar menos após a paupérrima exibição frente ao Sporting. Não temos apenas que ganhar. Temos de recuperar o orgulho. Ganhámos ao Dínamo Kiev e ao Famalicão? Porreiro. Tenho para mim que os jogos seguintes serão os verdadeiros testes que nos dirão se a equipa está de facto melhor e podemos aspirar a muito mais esta época, ou se teremos de acelerar um novo ciclo de liderança técnica, idealmente a tempo de chegar a Amesterdão com uma equipa oleada para disputar o acesso aos quartos de final. É curioso porque, tanto em caso de um desfecho como do outro, o Benfica terá muito a ganhar.

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