Algum folclore
A maioria dos adeptos de futebol em Portugal é a favor da violação do segredo de justiça quando prejudica o clube rival
«ENFIM! Isso… é preciso algum folclore nesta m***a!»AAAAAAA Os anos passam e esta continua a ser a melhor caracterização do futebol português que encontrei até hoje. A afirmação pertence a Valentim Loureiro e foi proferida numa conversa informal com Pinto da Costa a 1 de fevereiro de 2004, menos de 24 horas após um empate do FC Porto frente ao Sporting. O leitor imaginará que eu não participei nessa conversa, mas soube da sua ocorrência porque, tal como muitos milhões de portugueses, tive oportunidade de conhecer em detalhe as escutas do processo Apito Dourado, primeiro num canal de tv e, desde então, de consultar essas escutas no YouTube.
Não tomem aquilo que vou dizer por sociologia, que não vim ao mundo para isso. É apenas um indicador pouco rigoroso calculado ao longo de muito tempo em almoços de família, jantares de amigos, conversas de cafés, desabafos de taberna, comícios de restaurante, palpites em salas de espera, sentenças de oficina, assembleias gerais de WhatsApp, fóruns da rádio, e o que mais me tiver passado pelos olhos e pelos ouvidos. O indicador diz-me que, no final de contas, não conseguimos viver com este futebol e também não conseguimos viver sem ele.
Os adeptos dos clubes grandes, mais do que todos os outros, construíram uma relação tóxica com este futebol que tão cedo não irá mudar. Há alguns sinais ténues de uma nova cultura aqui e ali, mas estão longe de sinalizar uma tendência dominante. O futebol português ainda é tudo aquilo que desprezamos, mas a verdade é que os dirigentes dos nossos clubes foram eleitos democraticamente e os porta-vozes da corporação formada por esses mesmos clubes foram escolhidos pelos tais presidentes que elegemos. Ou seja, por muito que nos custe, nós quisemos tudo isto. É por isso que nos dividimos constantemente entre o insulto e a declaração de amor, a primeira para responsabilizar quem destrói o futebol português (os outros), a segunda para enaltecer quem achamos que o salva (nós, especialmente quando ganhamos). Por um lado, tudo isto também acontece porque há muita coisa boa no futebol português. Os tais 47 minutos de tempo útil do clássico de sexta-feira foram curtos se considerarmos o tempo regulamentar, mas mostraram mais uma vez que as equipas em questão têm excelentes jogadores e revelaram o cunho técnico, tático e mental da liderança protagonizada pelos dois melhores treinadores da liga na atualidade.
Se foi pouco? Foi. Se alguém deu por isso? Não tanto como alguns relatos mais analíticos deram a entender. Enquanto os analistas se lamentavam, o país entretinha-se a ver e a rever as agressões. Terminados os 47 minutos de tempo útil, sobra tudo aquilo que simultaneamente desprezamos e amamos. Muito tem sido dito nestes últimos dias sobre a necessidade de nos olharmos ao espelho e promovermos as mudanças necessárias no nosso futebol, como se, subitamente, meia dúzia de estaladas e empurrões trocadas entre jogadores e dirigentes fossem a faísca de uma revolução que nos permitirá evoluir para um patamar superior de civilidade; como se não andássemos há décadas a comer disto às colheres e a pedir para repetir: os dirigentes, as entidades que organizam as provas, os agentes da comunicação social, os comentadores, os adeptos, e quem mais puder entrar na roda. É este o tal folclore de que fala o major, e temos dançado todos.
A maioria dos adeptos de futebol em Portugal são a favor da violação do segredo de justiça quando prejudica o clube rival e são firmes defensores do estado de direito democrático quando o seu clube se vê em apuros. Têm toda uma agenda contra os árbitros quando não assinalam um penálti a favor da sua equipa e acham que se intoxica a competição quando os adeptos da equipa adversária se queixam das arbitragens. Acham que qualquer jogador que cometa um erro numa equipa que jogam contra os rivais está comprado e sentem-se vilipendiados se alguém sugerir que a mesma prática possa ter ocorrido no seu clube. Rimo-nos muito de nós mesmos quando ganhamos mas perdemos todo o sentido de humor quando os outros ganham. Ah, e não podemos elogiar o adversário porque isso significa ser contra o próprio clube. Se amanhã se distribuírem estaladas no relvado, a culpa será essencialmente dos outros e os nossos não fizeram nada. Tudo isto teria mais piada se não nos levássemos tão a sério.
Enfim. Também eu acredito que é preciso mudar o futebol português. Acredito que esse dia vai chegar e que essa mudança será representa de forma definitiva e mais intransigente por um novo tipo de dirigente e de líder. E sim, também me parece que precisamos de uma mentalidade competitiva manifestada de forma mais saudável. Só não sei quando e como é que tudo isso irá acontecer. Já me pareceu que estivesse para breve, mas se hoje olhar com atenção só vejo a mesma mesmice em toda a parte, dos dirigentes aos jogadores, passando pelos adeptos. É triste ou ilustrativo da minha ingenuidade. Se me perguntassem há 15 anos eu diria com certeza que vinha aí uma fornada de gente capaz de mudar isto para melhor. Entretanto passam-se uns anos e estou eu num canal de TV a apoiar de forma complacente um presidente errático que hoje é suspeito de roubar milhões do meu clube. A vida ensina-nos umas coisas.
De resto, e por muito que a possamos reivindicar, não é certo que se possa implementar a mudança por decreto. Como se altera uma cultura desportiva tão profundamente sentida pelos adeptos, especialmente se os adeptos sentem que é justamente a manifestação desses atributos que lhes permite vencer? E em que momento se concretiza essa mudança? O futebol português não fecha para obras. Assim que uma jornada termina, temos que levantar a cabeça e pensar no próximo jogo. Não há tempo nem energia para mudar este monstro chamado futebol português. É por isso que no entretanto pouco ou nada mudará, a não ser que a capacidade de lutar por essa mudança tenha novos instrumentos e aliados. Até lá, apetece levar tudo isto um pouco menos a sério, mas já sei que vou falhar. Enquanto a revolução não chega, é preciso saber dançar a dança para, somados todos os pontos, podermos ser os últimos a rir no futebol português, enquanto todos os outros choram ao som do nosso folclore.
Reparem como já lá vão quase 20 anos e está para chegar alguém com a capacidade de síntese de Valentim Loureiro. Não admira que nada mude.