Água mole em pedra dura...

OPINIÃO08.02.202305:30

Foi a lei de 2007 que abriu a porta aos interesses que circundam à volta do futebol e que pouco têm a ver com a modalidade e com a democracia. Têm apenas interesse pelo poder!

O ditado popular «água mole em pedra dura tanto bate até que fura» quer significar a persistência e os seus efeitos práticos. Isto é, queremos dizer que quando persistimos em alguma coisa a tendência natural é conseguirmos aquilo que estamos procurando alcançar. Naturalmente que há coisas em que podemos persistir a vida inteira que nunca iremos conseguir, mas existem também muitos exemplos de situações que provam que havendo alguma possibilidade a persistência é a solução para encontrarmos aquilo que procuramos. Na verdade, embora a pedra resista à água, com o tempo e a pouco e pouco vão-se abrindo fissuras por efeito da força da água.

Como fiz parte da Comissão que esteve na origem da Lei de Bases do Sistema Desportivo -Lei 1/90, de 13 de Janeiro - conheço bem o seu objecto e os princípios fundamentais porque se deve reger a actividade desportiva, alguns dos quais se encontram, ainda hoje, por aplicar, pese esta lei ter sido publicada em Janeiro de 1990, isto é, há trinta e três anos, e ainda que a Assembleia da República já tenha aprovado outras duas leis: a Lei 30/2004, de 21 de Julho (Lei de Bases do Desporto) e a Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto - Lei 5/2007, de 16 de Janeiro, actualmente em vigor.

Contudo, será curioso notar que, em certos aspectos, a evolução desta leis quadro do desporto reflectem uma fase de evolução da democracia, ao passo que a última, em vigor, já é resultado de uma certa degradação do regime democrático, mais virada para a defesa dos interesses individuais e corporativos.
Na verdade, comecemos pela análise do conceito de federação desportiva.

Na lei de 1990, que estabelece o quadro geral do sistema desportivo, tinha por objetivo «promover e orientar a generalização da actividade desportiva, como factor cultural indispensável à formação da pessoa humana e no desenvolvimento da sociedade», define no seu artigo 20.º as federações desportivas como pessoas colectivas que se constituam sob a forma de associação sem fim lucrativo e preencham, cumulativamente, os seguintes requisitos:

a) - se proponham, nos termos dos respectivos estatutos, prosseguir, entre outros, os seguintes objetivos gerais: promover, regulamentar e dirigir, a nível nacional, a prática de uma modalidade desportiva ou conjunto de modalidades afins; representar perante a Administração Pública os interesses dos seus filiados; representar a sua modalidade desportiva, ou conjunto de modalidades afins, junto das organizações congéneres estrangeiras ou internacionais.

b) Obtenham a concessão de estatuto de pessoa colectiva de utilidade pública desportiva.
O artigo 19.º da Lei 30/2004 - Lei de Bases do Desporto - define praticamente da mesma forma o que é uma federação desportiva, reforçando apenas a sua natureza privada: é uma «pessoa colectiva de direito privado...», acrescentando aos requisitos exigidos na lei anterior outros seis, entre os quais se destaca «promover a defesa da ética desportiva».

Finalmente, a lei actual - Lei 5/2007, de 16 de Janeiro - volta ao conceito de federação desportiva expresso na lei de 90, isto é, retira-lhe a expressão de direito privado e mantendo portanto o conceito de pessoas colectivas constituídas sob a forma de associação sem fim lucrativo e preencham, cumulativamente, os mesmos requisitos da lei de 90, eliminando assim os seis requisitos acrescentados pela lei de 2004.

Em resumo: o conceito de federação desportiva é praticamente o mesmo desde 1990 até aos dias de hoje e os requisitos a preencher são iguais aos da lei de 90. Até aqui tudo bem...

Vejamos, no entanto, quais os agentes desportivos englobados numa federação desportiva, isto é, quem são os seus associados, uma vez que se trata de uma associação.

Começando pelo artigo 21.º da lei de 1990 (Lei de Bases do Sistema Desportivo): praticantes e clubes ou agrupamentos de clubes. Simples e democrático, mas complicado para quem nunca assimilou a democracia como forma de desenvolvimento das sociedades.

Olhando agora para o artigo 20.º da Lei de Bases do Desporto (Lei 30/2004, de 21 de Julho), constamos que a simplicidade se mantém com a inclusão apenas das sociedades desportivas, então uma realidade já existente: praticantes; clubes ou agrupamentos de clubes e sociedades desportivas e agrupamentos de sociedades desportivas.

Nestas circunstâncias não havia sindicatos de votos nem corporações a controlar o poder.

Foi a lei de 2007 (Lei da Actividade Física e do Desporto) que, forçado pelo futebol e a sua federação, abriu a porta aos interesses que circundam à volta do futebol e que pouco têm a ver com a modalidade e com a democracia. Têm apenas interesse pelo poder!

Na verdade, o artigo 14.º desta lei veio englobar nas federações desportivas além dos clubes e das sociedades desportivas e dos praticantes, as associações de âmbito territorial e as ligas profissionais (de certo modo, agrupamentos de clubes e agrupamentos de sociedades desportivas), os técnicos, juízes e árbitros e «demais entidades que promovam, pratiquem ou contribuam para o desenvolvimento da respectiva modalidade».

Nada temos contra o facto de os árbitros e os técnicos serem associados das federações desportivas como estabelece a lei, enquanto tais e diretamente, e não através de organizações sindicais ou outras. Contudo, abriu-se a porta às corporações com interesse no controle do poder, e não na promoção ou desenvolvimento da respectiva modalidade, e aí é que está o problema, designadamente, na modalidade futebol, onde a famosa grelha do controle foi assegurada através de diversas entidades, que não passam de sindicatos de voto, alérgicos à democracia.

E é essa composição da Federação Portuguesa de Futebol, reflectida na composição da Assembleia Geral dessa federação desportiva que, em minha opinião, viola o estatuto de utilidade pública desportiva que lhe foi conferido, e que implica funcionamento democrático e transparência na gestão.

Voltaremos ao assunto em próximo artigo. Não para ser água mole em pedra dura, mas porque é minha convicção que, sem mudança, tudo ficará na mesma. Não quero furar, mas também não me quero resignar!
 

NOTA FINAL

LI ontem neste jornal, sob o título «Decisões do VAR explicadas ao público em directo», a notícia de que Pierluigi Collina, mais conhecido pelo Fontelas da FIFA, vai revelar essas decisões para as tornar mais compreensíveis, na sequência da decisão do International Board. Tal decisão vai tomar forma, a título experimental, no Campeonato Mundial de Clubes.

Na realidade, ainda há quem goste da democracia ao contrário de outros que não apreciam esse regime; há quem goste da transparência e outros que sobrevivem com a opacidade; e há quem goste da verdade, desportiva e não só, e outros que só convivem com a mentira.