Pontapé de Estugarda A origem
Se teremos sempre Paris foi porque Estugarda permitiu-nos sonhar
MUNIQUE – A culpa foi da ITT, uma televisão a válvulas revestida de um misto de madeira e plástico que fazia daquele objeto retangular um monstro, cujo transporte obrigava a quatro braços: o pai de um lado, o tio do outro. Em 1984, o raio do mostrengo decidiu falhar naqueles dias de verão, já não me lembro se por causa do botão em forma de cavilha que não ia para o fundo ou por outro motivo qualquer. Seguramente que foi mecânico, porque de digital só a impressão que eu deixava no grosso monitor de vidro. E como há 40 anos quando falhava a TV não havia outra hipótese que não recorrer à casa do vizinho (quando a televisão não avariava também) ou ao café, as memórias daquele Europeu em França tornaram-se demasiado difusas, porque na verdade o único jogo a que assisti em condições mínimas de visibilidade e do princípio ao fim foi aquele 2-3 frente aos senhores de azul liderados por Michel Platini. Não foi a melhor experiência.
Serve isto para dizer que a primeira grande alegria em tempo real que me foi dada pela Seleção Nacional ocorreu no ano seguinte, com aquele remate de Carlos Manuel em Estugarda. Não só pelo gesto que foi um monumento, mas por contrariar a narrativa vigente até ao início do século XXI, que ilustra bem o atraso social, cultural e até nutricional que tivemos de recuperar em poucas décadas: que eles eram mais altos, mais fortes, mais inteligentes e tinham os últimos 30 metros. Talvez por isso aquele pontapé de Estugarda ganhou o estatuto de mito, representando um intervalo na mediocridade, o futebol como metáfora do país.
Felizmente que muitos anos depois um outro pontapé, também fora da área, devolveu a Portugal uma grandeza que já tinha sido recuperada (agora temos jogadores mais altos, mais fortes e melhores últimos 30 metros que os germânicos), mas se ainda hoje teremos sempre Paris foi porque um dia Estugarda mostrou que, afinal, era possível sonhar. Esta crónica nunca poderia ter outro nome.