«Deixei tudo para trás por causa da guerra, no Benfica o dinheiro não importa»
Viktoriya Borshchenko, jogadora de andebol do Benfica (Miguel Nunes/ASF)

«Deixei tudo para trás por causa da guerra, no Benfica o dinheiro não importa»

ANDEBOL23.12.202309:00

Viktoriya Borshchenko é dona de um currículo impressionante no andebol internacional. A jogadora ucraniana mudou-se para as águias em abril de 2022 e apaixonou-se pelo clube

A invasão da Ucrânia pela Rússia fez chegar a Portugal uma jogadora com um currículo internacional de luxo. A melhor marcadora da história da seleção ucraniana, com várias presenças na ‘final four’ da Champions, e vencedora de cinco campeonatos, sete Taças, sete Supertaças da Rússia reforçou o Benfica em abril de 2022 ajudou as águias a consquistarem dois títulos de campeão, duas Taças e outras tantas Supertaças.

Em pouco mais de um ano e meio já marcou mais de 300 golos no campeonato português, prova na qual foi eleita a melhor jogadora da última época. 

Em conversa com A BOLA, Viktoriya admite que chegou a um clube que já a conquistara muito antes, ela que é apaixonada pelo nosso país, que visitava pelo menos uma vez por ano, desde 2012. A paixão maior, porém, é mesmo o andebol. Uma ligação que vem desde criança e que não vai terminar com a fim da carreira de jogadora.

Como é que o andebol entrou na sua vida?

O meu pai teve três filhas e acredito mesmo que ele sempre esperou por um filho. Ele foi jogador de futebol e gostava de todos os desportos. Na minha cidade o andebol era muito forte, eu comecei a ir aos treinos e o meu pai ia sempre comigo. Quando eu era pequena, só via andebol na minha vida. E ele estava sempre, sempre, comigo. Filmava todos os treinos e quando chegávamos a casa, mostrava-me o que eu tinha feito mal. Todos, todos os dias! [risos]. O andebol era a minha vida e eu e o andebol éramos a vida do meu pai.

Continua a ser algo que vos liga?

Sim, claro. Ainda hoje, ele está sempre a falar do andebol. Liga-me a perguntar: «mas por que raio marcaste o livre de sete metros daquela forma?». Ainda hoje! Por isso, só tenho de agradecer-lhe porque foi o meu pai que me mostrou este desporto incrível, e foi o andebol que me permitiu ter esta vida. Sinto-me tão feliz por ter tido esta sorte e as experiências inacreditáveis que já vivi.

O que acha que teria sido se não se tivesse tornado jogadora de andebol?

Eu também gosto muito de futebol. Mesmo muito. O meu pai passou-me esse gosto. Aos 14 anos, quando nos mudámos para outra cidade, ele abriu uma equipa de futebol feminino. Por isso, acho que teria sido jogadora de futebol.

Ou seja, não imagina a sua vida sem uma ligação ao desporto?

Não, é impossível! Quando era mais nova, jogava a época normal de andebol, e no verão participava em torneios de futebol. Sempre. Não tinha férias. Era andebol e futebol. Andebol e futebol. Ainda ganhei algumas coisas no futebol [risos].

Viktoriya Borshchenko, jogadora de andebol do Benfica (Miguel Nunes/ASF)

É, provavelmente, a jogadora com palmarés mais rico de sempre a jogar andebol em Portugal. Porque escolheu o país?

Adoro Portugal. Todos os verões vinha para cá. Sempre pensei que um dia acabaria por mudar-me para cá, mas não desta forma. Vim porque a guerra começou e eu decidi deixar a Rússia, onde joguei 11 anos. Foi uma situação muito complicada. A guerra começou em fevereiro, e eu tive de decidir o meu futuro. Gosto muito de andebol e no futuro quero ser treinadora. Por isso, tinha decidido que iria viver na Rússia que é ótimo para se ser treinador. Eu não queria deixar o país, mas não podia continuar lá por causa da guerra. Dois dias depois da invasão, decidi sair. Também não havia hipótese de voltar à Ucrânia, por isso a solução foi vir para Portugal. 

É uma lenda do andebol ucraniano e tornou-se uma referência na Rússia, que é um país do qual também gosta. Como lida com o que está a acontecer entre os dois países?

Quando jogava em Rostov, muitas vezes me falaram da possibilidade de mudar de nacionalidade. Porque joguei lá muito tempo. Mas o meu coração é ucraniano [aperta a mão contra o peito]. E sempre que me falavam disso – e é mesmo verdade! – eu chorava e dizia que era impossível tornar-me russa. Se agora me dissessem para me naturalizar portuguesa, seria muito fácil [gargalhada]. Muito fácil. Mas naquela altura, mesmo antes da guerra, nunca senti esse apelo. E depois de a guerra ter começado, senti-me tão orgulhosa de mim mesma por ter decidido assim. No meu coração, sou ucraniana. Mas posso ser portuguesa também [mais risos].

Como foi a mudança para uma realidade tão diferente?

Passei anos incríveis na Rússia. Tem um grande nível desportivo e fico muito feliz por ter trabalhado com treinadores fabulosos. Além de jogadoras incríveis com quem joguei. Passei belos momentos lá. E quando se joga naquele nível, na Champions também, torna-se quase um cavalo a correr. São jogos atrás de jogos. E por causa do tamanho da Rússia tem de se viajar muito, grande parte das vezes com dois voos para cada jogo e não há tempo para viver. Aqui tenho tempo para viver [risos]. É diferente. Agora vivo e aprecio a vida, mas os anos na Rússia foram incríveis. 

O que a surpreendeu mais no andebol português?

Digo sempre isto: há jogadoras incríveis. Muitas jogadoras de grande qualidade. Na minha equipa, então, há tanta qualidade! Joguei num país que ganhou Jogos Olímpicos, Mundiais, Europeus, e que tem um nível muito elevado e grandes jogadoras. Mas acreditem: Portugal tem muitas jogadoras de enorme qualidade. Vamos jogar contra o 6.º classificado… chegamos lá e há jogadoras com um remate incrível, atletas de grande qualidade. Há mesmo miúdas muito talentosas…

Viktoriya Borshchenko, jogadora de andebol do Benfica (Miguel Nunes/ASF)

E no Benfica…

Ah! Incríveis! A Constança [Sequeira]… a Maria Unjanque. Não me vou lembrar de todos os nomes, mas há mesmo miúdas talentosas. Elas são a razão pela qual eu não quero sair do Benfica. Não as quero deixar, quero ajudá-las a crescer porque anseio por vê-las no nível mais alto possível. Elas podem mesmo chegar ao topo. E o clube também tem tudo para chegar a outro nível.

Já conquistou inúmeros títulos ao longo da carreira, quão importantes foram aqueles que ganhou desde que está no Benfica?

Ainda ontem recebi uma mensagem do meu pai a dizer: “não te esqueças de trazer todas as medalhas” [risos]. Porque vou passar uns dias à Ucrânia. Tenho mesmo muitas, mas quando ganhei o título nacional com esta equipa foi… já não me lembro quando me tinha sentido tão feliz por ganhar algo. Olhar para as minhas companheiras e ver a alegria delas foi um sentimento incrível. Foi um sentimento como aquele que tive quando joguei a final-four da Champions. Não estou a exagerar. Foi semelhante, porque foi muito emocionante ver as miúdas tão contentes, com as lágrimas nos olhos… Esse título significa muito para mim pela emoção que fez viver. 

E foi eleita a melhor jogadora do campeonato…

Sim. Nem mostrei esse troféu ao meu pai porque deve ter perto de 10 quilos. E ele de certeza que vai querer que eu o leve [risos]. Mas não vai ser possível. É um troféu lindíssimo que tenho de agradecer às minhas colegas de equipa.

Viktoriya Borshchenko, jogadora de andebol do Benfica (Miguel Nunes/ASF)

Depois dos primeiros meses no Benfica, deve ter recebido várias propostas para sair para clubes de outro nível europeu. Porque decidiu renovar?

Sim, no verão recebi mesmo muitas propostas… Com ofertas de muito dinheiro. Mesmo muito dinheiro! Mas não. Eu adoro mesmo esta equipa e estas miúdas. Quando a guerra começou, eu estava na Rússia há 11 anos e deixei tudo para trás. A casa, as roupas – e sabe como são as raparigas, têm muita coisa! – e ficou lá tudo. Também perdi muito dinheiro. E nesse momento, quando decidi deixar para trás uma equipa com muito dinheiro para vir para aqui, e encontrei uma equipa com gente de quem gosto tanto, num país do qual gosto tanto… aí deixou de ser pelo dinheiro. Fiquei aqui por causa destas jogadoras e do grupo incrível que nós temos. É por isso, por causa desse ambiente que eu ainda aqui estou.

Tem uma longa ligação com Portugal, vinha todos os anos, há mais de 10 anos. O que a atrai tanto no país?

Sim, eu vinha para cá todas as minhas férias. Adoro o país, a comida [risos], gosto muito das pessoas, que são sempre tão queridas. Estou mesmo muito contente por estar aqui.

Até estava cá quando a seleção de futebol se sagrou campeã Europeia, em 2016…

Sim, é verdade! [risos]. Estava de férias cá e foi surpreendente. Acho que nem se ganhasse a Liga dos Campeões de andebol viveria toda aquela emoção. O ambiente foi inesquecível. Festa durante toda a noite – até eu fiquei a celebrar até de manhã! Depois acordámos e as televisões mostravam o avião a aterrar e as pessoas outra vez na rua à espera dos jogadores.

Ia muitas vezes ver eventos desportivos…

Sim. E tenho uma história incrível com o Benfica. Uma das minhas primeiras publicações no Instagram foi num jogo de futsal entre o Benfica e o Sporting aqui no pavilhão da Luz. Eu estava mesmo ao lado da claque do Benfica e quando eles começaram a cantar SLB, SLB, Glorioso, SLB, ah… [faz um coração com as mãos]. A partir daí, passei a dizer sempre: «sou benfiquista!» Isso foi em 2013 e desde então, gosto mesmo dessa música. No meu primeiro ano cá, quando fomos à final da Taça e voltei a ouvir essa música, fiquei tão, mas tão contente. E sempre que vou ao estádio, essa música é especial. Como é a vida, não é?

Tem 37 anos. Pensa no final de carreira, ou ainda é cedo?

Quando jogava no Rostov, pouco antes de a guerra começar, terminei o primeiro nível do Master Coach [curso de treinadores de nível europeu]. E ficou apalavrado que na época seguinte eu terminaria a carreira e passaria a ser a treinadora-adjunta. Também porque não estava a sentir-me bem com o grupo de jogadoras. Mas aqui… [rasga o sorriso!] Ainda não é altura para deixar de jogar. Estou a gostar tanto de jogar com elas que é impossível pensar em terminar a carreira. Acho que têm de me matar primeiro [gargalhada]. Os desportistas normalmente saturam de ir para o treino, o ginásio, fazer corrida… Mas eu ando tão feliz que até nas folgas vou correr ou treinar para o ginásio. Às vezes penso “já não vais para nova”, mas estou mesmo a adorar e o mais importante é divertires-te. 

Viktoriya Borshchenko, jogadora de andebol do Benfica (Miguel Nunes/ASF)

E Portugal pode ser um bom sítio para ser treinadora?

Porque não? Como já disse, a seleção portuguesa não está ao nível de França ou Dinamarca, mas há aqui jogadoras incríveis e talvez seja um bom momento. Espero muito poder fazê-lo. Depois de terminar a carreira de jogadora, talvez o meu início como treinadora possa ser com a seleção portuguesa. Gostava que acontecesse, mas nunca sabemos como será a nossa vida. Gostaria muito!

Há cerca de 30 anos um treinador ucraniano, Aleksander Donner, ajudou a revolucionar o andebol português, conhece-o?

Não, não conheço o nome. Tenho de investigar. O único ucraniano que eu conheço com ligação a Portugal é o [Yuiry] Kostetskiy. Que jogou muitos anos no Madeira SAD e que eu lembro-me em criança de ouvir falar muito bem de Portugal. Penso que ainda está em Portugal.